Compreender as crianças como sujeitos autônomos, capazes de escolher seus livros, refletir sobre as narrativas, reescrever as histórias, posicionar-se frente à trama e seus movimentos, fazer correlações com suas experiências e memórias, emocionar-se, imaginar, gostar e desgostar de livros... Há tanto no infinito campo das vivências de leituras!
Por vezes, não sabemos como lidar com esses sujeitos desbravadores de si e das narrativas. Mas, os diversos caminhos trilhados na vida sempre nos ensinam. Assim, procuramos estar com elas intuitivamente e colaborar com suas explorações: ora, somente orientando sobre os livros; ora, lendo para os que não sabem ler as palavras; ora, ouvindo seus comentários e narrativas sobre os livros e suas vidas; ora, somente presente...
A cada encontro, reinventamo-nos como educador e pessoa. As crianças leitoras orientam esses aprendizados do educador pessoa. A cada experiência nas praças, pequenos deslumbramentos humanos acontecem misteriosamente e sensivelmente (difícil explicar os mistérios fantásticos do viver – apenas vive). Só precisa estar aberto para novas maneiras de viver educação. Sem modos fechados e absolutos. Sem respostas prévias. Apenas participando criativamente das vivências regidas por livros e pessoas.
Os orixás nos desafiaram nessa manhã com um mar diverso de crianças singulares. Uma criança pequena que não sabia ler, numa mesa. Quatro amigas, cada uma com competências de leitura distintas, noutra mesa. Dois pré-adolescentes, numa terceira mesa. Uma avó com sua neta autista no interior da biblioteca móvel. E margeando nosso campo de vivências e leituras, algumas pessoas embriagadas. Ao ocupar uma praça não escolhemos um público e os desafios próprios de um espaço aberto com frequentadores vários.
Mantivemos uma vibração mental pacificadora e buscamos acolher cada criança leitora. Criamos um jogo para estimular a leitura entre as quatro amigas: cada uma lia em voz alta uma página da narrativa e passava para a colega (elas estavam agitadas e conversadoras). Lemos livros para a criança sem habilidade de ler palavras. Observamos de longe os dois pré-adolescentes lendo e interagindo. Mantemo-nos à disposição daquela avó com sua neta no interior do furgão.
Cidadania não é uma palavra vazia. Cidadania é uma criação humana e cotidiana que se multiplica em cada gesto. Como compreender o respeito e a empatia sem exercitá-los? Como garantir o direito à leitura sem partilhar livros? Como estimular diálogos e trocas sem processos educativos rotineiros e desafiadores? Como percebemo-nos sujeitos políticos se não pensamos e propomos práticas coletivas e solidárias? Como criar pessoas criativas e problematizadoras se não fomentamos outras experiências do imaginar e pensar?
As crianças do grupo “Amigos do Livro e Outras Nuvens” continuam participando de duas rodas de conversa: uma com as crianças até nove anos; outra com as crianças acima dessa idade. No grupo das “pequenas” voltamos a tocar na importância de ir às bibliotecas e conquistar o direito a empréstimos de livros para ler em casa. Algumas crianças relataram que procuraram suas professoras para tomar livros emprestados, mas, ainda, receberam a negativa como resposta ao seu direito.
Quão felizes ficamos ao ouvir que duas crianças, no horário do recreio, estão indo à biblioteca nalguns dias durante a semana. Uma delas nos contou sobre um livro da Turma da Mônica. E seu orgulho ao contar sua experiência!!! A fala articulada e coerente!!! O sorriso no rosto!!! São pequenos matizes da aprendizagem-conquista de cidadania: interpelar os professores e gestores da escola sobre o empréstimo de livros; ocupar as bibliotecas e ler; falar e ser ouvida sobre suas experiências leitoras.
Para muitas crianças a biblioteca ainda é um mundo estranho. Por quê? Por que não aproximamos crianças dos livros literários? Por que priorizamos os livros didáticos e deixamos, como atividade ocasional, atividades de leitura de contos e poemas infantis? Por que desprezamos a linguagem criativa e imaginativa para priorizar suas expressões racionais e descritivas?
Por quê?
Por quê?
Por quê?
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