A ideia de um balanço ou avaliação sempre é preocupante ou desconfortável, à primeira vista. Provavelmente, por indicar que tudo que fora previsto não foi executado (e como não ser diferente!). Ou, de modo similar, que as ideias estão aquém da realidade vivida pelos sujeitos. Por mais que os planos sejam necessários e as metodologias orientem o fazer dos sujeitos, são nas relações concretas que fazemos nossas escolhas e desenvolvemos nossas ações. E temos aprendido muito com o desenvolvimento das coisas! Isso nos ensina que nossos planejamentos devem ser flexíveis. Assim, esse olhar sobre a caminhada do programa de extensão “Humanismo Caboclo: educação e cidadania”, neste ano de 2019, procura apreender lições e desafios para o pensar e o fazer extensionista.
Inicialmente, desejamos retomar um conceito sobre extensão partilhado em um artigo publicado neste mesmo site, denominado “Extensão universitária e seus matizes – por que fazer extensão?”. Nele defendemos que extensão “pauta-se por uma mediação específica com a sociedade, já que ensino e pesquisa também são trilhas de trocas com o mundo externo. Sua especificidade está na partilha da cultura de saberes com aqueles segmentos sociais distantes deste capital simbólico bem como com aqueles que promovem ações de interesse social (escolas, hospitais, instituições sociais, ongs, movimentos sociais, associações etc.). Logo, a extensão oportuniza a partilha do cabedal intelectual com a finalidade da promoção de algum desenvolvimento social (não compreendido como assistencialismo social). Desenvolve ações coletivas com instituições públicas e privadas, grupos, movimentos sociais e associações a fim de uma partilha democrática dos saberes, técnicas e tecnologias sociais. Este critério da partilha pública para atender interesses coletivos é fundamental. A extensão está a serviço do bem social e não para atender interesses de indivíduos”.
Extensão universitária compreende uma partilha específica com a sociedade: um compartilhamento coletivo de saberes e tecnologias a fim da promoção de algum bem público. Compreendemos que essa natureza pública e coletiva da extensão é fundamental para pensar e desenvolver projetos e programas de extensão. Ao mesmo tempo, é um grande desafio numa sociedade cumulativa, competitiva e individualista.
Esta sociedade individualista e competitiva reflete muito no modo como se pensa e faz as ações universitárias. Por exemplo, a ditadura da produtividade docente atestada por um currículo lattes extenso e marcador de status social. Nessa lógica de classificar as ações docentes entre aquelas com maior e menor valor, a extensão, certamente, tem tomado uma posição inferior. Assim, há uma política que desvaloriza o fazer extensionista tanto pela desvalorização simbólica como pela falta de recursos fundamentais para o desenvolvimento de tal fazer. Professores e estudantes se veem desestimulados a dedicar-se à extensão.
O Humanismo Caboclo (HC) sofre com essa desvalorização simbólica e financeira da extensão: os estudantes acabam por não querer dedicar-se e, quando escolhem fazê-la, a extensão é sempre a última prioridade frente ao ensino e à pesquisa. Por outro lado, deslocar estudantes para fora da universidade, para desenvolver ações extensionistas, esbarra na precariedade dos serviços de transporte e de demais recursos para tais ações (papel, fotocópias, pinceis e outros materiais e equipamentos).
Outro ponto fundamental a se destacar é o tempo da extensão. Geralmente, imagina-se que basta planejar a ação, definir um parceiro externo e desenvolver a atividade. De modo algum! Vamos discutir melhor cada um desses pontos.
Primeiro, a construção das parcerias e o desenvolvimento das mesmas. Além da construção coletiva do planejamento inicial, é necessário, pelo próprio caráter de uma parceria, rever periodicamente as ações à medida das dificuldades e desafios encontrados. Por exemplo, a parceria do HC com uma escola para o desenvolvimento da formação de leitores. Desde as condições da biblioteca escolar (iluminação, organização do acervo, limpeza do espaço etc.) até as concepções antagônicas sobre o que é leitura e qual sua importância na formação dos estudantes. À medida do desenvolvimento da ação, essas diferenças e posturas diferenciadas podem entrar em choque ou gerar novos desafios para aquela ação extensionista. Logo, pressupõe mais tempo para tanto.
Segundo, a relação com os parceiros, fundamental para todo fazer extensionista, pressupõe um fazer dialógico continuado. O HC sofreu com as armadilhas do tempo, ou melhor, da falta de tempo: não conseguiu investir de modo fraternal e reflexivo nessas mediações. As dificuldades e desafios surgiram, mas não houve dedicação necessária para transformar tais situações.
Terceiro, a ideia de ação precisa ser revista. Ação compreende um complexo de interações e novos desafios dados por essa continuidade: não um fato fechado e previamente determinado. Ao desenvolver as atividades de incentivo à leitura, definiu-se com as crianças participantes que seria importante a criação de um mural para divulgação das atividades, das produções de texto e desenhos das crianças. E o material necessário? Como essas produções das crianças podem relacionar-se com as demais criações de outras crianças da escola? Como envolver outros professores e professoras?
Não se pode imaginar uma ação fechada em si mesma ainda mais quando envolve uma organização como uma escola. Se insistir na sua permanência como uma ação isolada, provavelmente, não haverá continuidade da mesma ou, ainda pior, ela não será abraçada pelos atores que fazem a escola. O planejamento precisa ser flexível e a instituição de ensino superior compreender que esse processo é complexo (logo, não se resume a uma atividade pontual com resultados exclusivamente quantificáveis).
Quarto, o processo extensionista precisa ter continuidade: seja pela reverberação dos saberes nas práticas e ações das parcerias; seja pela continuidade das ações pelos próprios atores participantes; seja pelas mudanças nos projetos e programas de extensão (objetivos e metodologias, principalmente). Vamos tratar separadamente esses pontos.
Quando se pensa nos reflexos da ação extensionista com os parceiros, importante perceber as mudanças protagonizadas por esses. Um exemplo: ao desenvolvermos o projeto “Leitura é vida” (parte do projeto “Leituras e descobertas do mundo”), o professor coautor da ação passou também a abrir a biblioteca de sua escola todas as segundas-feiras durante o recreio para favorecer a frequência das crianças na biblioteca e a prática da leitura (já que a biblioteca, normalmente, mantem-se fechada).
Ao pensar a continuidade das ações, recordo-me do projeto “Amigos do livro e outras nuvens” (também parte do projeto “Leituras e descobertas do mundo”). O grupo de jovens parceiro da ação, na Santa Maria da Codipi, deu continuidade às atividades educativas nos sábados à tarde com crianças do bairro. Além da formação de leitores, outras ações foram incorporadas: oficina de artesanato, escolinha de futebol, produção de textos. Um dos modos de legitimar as práticas extensionistas reside na reconstrução das ideias extensionistas pelos atores sociais: aqueles conhecimentos e experiências servem para transformar, de algum modo, as vidas das pessoas participantes. Por essa razão, como veremos adiante, a metodologia do trabalho educativo do HC envolve a participação ativa dos parceiros no seu desenvolvimento.
Quanto às mudanças nas próprias ações extensionistas, todos os projetos do HC transformaram-se a partir de suas histórias: Curso de Formação de Educadoras(es) Jovens do Campo (desde 2010), Leituras e Descobertas do Mundo (desde 2016), O Campo É Nosso Presente (desde 2017), Oficina Juventudes e Sociologia (desde 2010), Oficina Criança – Ator do Mundo (desde 2017) e Oficina Comunicação Comunitária (desde 2017). Seja pelas novas parcerias, ou pelos desafios enfrentados, ou pelos novos saberes e visões, ou por mudanças nos objetivos e metodologias, todos os projetos do programa de extensão HC transformaram-se com suas experiências e histórias.
Assim, outra questão fundamental a ser avaliada são as experiências do HC como parte da formação dos extensionistas (coordenador e estudantes extensionistas). Certamente que não vivenciamos do mesmo modo as ações: cada sujeito particular experimenta de um modo próprio. Mas, temos observado alguns pontos nessa trilha de aprendizagens. Primeiro, as ações educativas do HC compreendem uma visão sobre educação que é, ao mesmo tempo, compreensiva e histórica: os atores se compreendem, pela troca de saberes e experiências, como sujeitos de suas histórias. Essa educação não hierarquiza nem segrega (aquele que sabe – o professor – e informa àqueles que não sabem – os alunos). Pelo contrário, potencializa encontros, reflexões, novos saberes e novas atitudes no mundo.
Segundo, toda ação educativa pressupõe um planejamento que integra dois princípios: por um lado, que visões e conhecimentos os educadores partilham e orientam suas atividades formativas; por outro lado, quem são os educandos (realidades, saberes e expectativas). Pelas mediações entre esses atores que são estruturadas as práticas educativas. Terceiro, o desenvolvimento das atividades compreende uma avaliação permanente: cada nova etapa do desenvolvimento da ação parte da avaliação do processo anterior. Nessa avaliação são identificados progressos, dificuldades, potencialidades, novas demandas etc. Assim, aprimoramos o processo a partir dos desafios e possibilidades dados.
Quarto, o estudo continuado é fundamental para alimentar o processo educativo: estudar sugere novas abordagens e questionamentos, estimula a criatividade na construção dos meios pedagógicos e garante um diálogo com as demandas dos educandos. Por meio dos estudos continuados que realimentamo-nos como educadores (pessoas identificadas com o aprender-ensinar). Quinto, a competência é uma construção processual. Não é algo estático e já conquistado; pelo contrário, é uma construção continuada perseguida por todo educador ou técnico. Assim, compreende-se que as experiências educativas nos desafiam permanentemente a novos passos e conquistas: as experiências com as mediações teoria-prática são fundamentais para nossa construção como educadores. Educação não é um conjunto de técnicas ou recursos didáticos, mas um processo complexo onde todos os atores envolvidos aprendem e se transformam.
Acreditamos que a equipe de extensionistas do HC tem se encontrado com esses princípios que orientam nossas ações de educação e cultura (e políticas também). Cada um, ao seu modo, tem ressignificado e construído seus próprios sentidos para esses fundamentos. Nesse sentido, esse exercício de avaliação contribui com essa elaboração de significados sobre as experiências e a construção de novos atores históricos (por isso, fomentar ações de educação e cultura são ações políticas).
Assim, entende-se que a trajetória extensionista é também um processo pedagógico. A relação entre a coordenação do programa de extensão e os extensionistas não se resume ao cumprimento de tarefas designadas pelo coordenador. Exploramos uma extensão dialógica, processual e que educa por meio das relações entre coordenação e extensionistas, dos planejamentos propostos, ações desenvolvidas, avaliações das mesmas e estudos para subsidiar as atividades. Tudo faz parte dos aprendizados vivenciados pela equipe.
Por fim (mas sem imaginar que estamos encerrando as possibilidades da avaliação), destacamos que não apresentamos números nessa avaliação: carga horária, número de participantes, quantidade de meses etc. Por mais que possam contribuir com um dimensionamento geral do HC, no momento, interessa-nos a dinâmica viva das experiências do Humanismo Caboclo: como estas contribuem para a compreensão dessa trajetória extensionista. Por sua compreensão, identificamos princípios que norteiam nossas ações como educadores e educandos, mas também os próprios aprendizados e transformações decorridos do fazer político de ações educativas e culturais. Quão mais sábios, justos, tolerantes, éticos para os desafios de nossas vidas. Os resultados quantitativos nada mais são do que expressão numérica daqueles aprendizados e transformações. E essas é que nos interessam. Por Luciano Melo
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