
Universidade é uma instituição extremamente complexa, ainda mais nesse contexto da sociedade contemporânea. Espaço social de produção de saberes, construção de experimentos tecnológicos e sociais, formação de profissionais (professores, técnicos, pesquisadores), ações e/ou trocas extensionistas com a sociedade, debates e discussão sobre o passado, o presente e o futuro das sociedades, campo de memória e partilha da cultura humana etc. Uma coisa é certa: cada vez mais se compreende que a instituição universidade não se mantem isolada, acima das demandas e pressões da sociedade. Seja demandas políticas as mais variadas, pressões econômicas ou culturais. A universidade é parte viva da sociedade.
O pesquisador Enio Waldir da Silva (2003, p. 14) pondera: “a pluralidade das ações, a diversidade de modelos existentes e as diferentes funções que cumprem nos diferentes países, levam muitos estudiosos a não mais chamá-la de universidade, mas de multiversidade ou pluriversidade. Estas características de multiplicidade têm suas defesas e condenações: as defesas são justificadas nas exigências da sociedade, carente de ação universitária útil, efetiva e eficiente, que auxiliasse a resolver seus problemas; as condenações estão baseadas no pragmatismo das ações que a instrumentaliza e a torna ajustada aos interesses dos controladores do mercado. Assim, a instituição encontra-se em meio a uma difícil e perplexa rediscussão de seus fins, que devem estar além da aculturação, da pesquisa isolada e de formar profissionais”.
Não há uma visão única sobre universidade. Seja aquela que a concebe pragmaticamente como espaço de formação de recursos humanos competentes para o mercado e para a organização burocrática estatal (a expansão do ensino superior brasileiro nas últimas décadas, o que alguns autores denominam como massificação, é bem representativa dessa visão). Seja a que apregoa que as universidades necessitam modernizar-se e construir parcerias com empresas a fim de garantir sua manutenção e incentivar a renovação tecnológica. Seja a que compreende a universidade como espaço múltiplo e autônomo de produção de saberes e de práticas de ensino. Seja aquela que combina essas visões distintas. É nesse cenário plural e contraditório que universidades e faculdades constituem-se.
A partir dessa configuração é importante questionar-se: qual a relação entre universidade e mercado? Deve haver uma estreita combinação de interesses entre ambos e as instituições universitárias voltarem-se para a qualificação de mão de obra e contribuírem com pesquisas de tecnologias para a inovação mercadológica? Por outro lado, como deve comportar-se frente à sociedade contemporânea como um todo? Diante de uma sociedade desigual e de um mundo globalizado, que direções tomar? Como campo da cultura abstrata e do pensar autônomo que caminhos seguir frente às contradições e desafios culturais, econômicos, políticos, ecológicos, sociais etc. do mundo contemporâneo?
Certamente que as instituições universitárias não são as únicas promotoras de saberes e debates, mas é um espaço privilegiado para a construção de reflexões sobre todas aquelas questões. Cabem-lhes voltar-se para compreender de forma livre, ampla e plural as problemáticas contemporâneas: da tecnologia aos problemas climáticos; das liberdades individuais aos desafios de um desenvolvimento social e justo; das histórias e memórias das sociedades e grupos aos desafios dados pela globalização mundial; dos micro campos sociais à discussão sobre o universo; das artes e filosofias às múltiplas expressões da política e da educação. Limitar-lhes ao desenvolvimento econômico é desrespeitar toda sua trajetória rumo a uma humanidade plural, solidária e infinita. Universidade é espaço de construção de saberes que se opõem ao imediatismo do real e aos pensamentos disciplinados. Ao mesmo tempo, é campo de promoção e elaboração da cultura geral humana.
E como entender a extensão nessa orbe infinita das configurações de universidades? Para além da ideologia do tripé universitário – ensino-pesquisa-extensão (“nas universidades públicas [...] a extensão sempre foi vista como complemento a outras atividades de ensino e pesquisa” (SILVA, 2003, p. 17) –, faz-se necessário refletir sobre o que de fato vem sendo a extensão universitária. Espaço de formação complementar de profissionais? Campo de expressão de responsabilidade social de instituições universitárias? Laboratórios sociais para sedimentar competências técnicas dos atores em processo de qualificação por meio da prestação de serviços? Modo de mediar problemas sociais pela assistência promovida por professores e estudantes? Ações de difusão cultural (concertos, recitais, espetáculos, audições de cunho científico, filosófico, desportivo, educacional etc.)? Programas de formação continuada na modalidade de cursos, oficinas, seminários, estágios etc.? Palco de trocas com sujeitos, grupos e instituições sociais onde universidades e sujeitos sociais se reconstroem por meio de suas mediações sociais?
Essas perguntas já indicam que não há historicamente uma compreensão única sobre o que e para que a extensão universitária. Enio Silva (2003, p. 56) propõe a seguinte síntese para definir o “campo de atividade” de extensão : “articula os interesses do ensino e da pesquisa com os interesses sociais. Legitima-se pela presença de agentes universitários nos setores sociais, executando ações de serviços, assistências, projetos culturais, ensino de extensão, etc.”. Ao buscar atender interesses sociais diversos e com visões bastante distintas e, por vezes, antagônicas, de como responder a esses interesses, temos verificado historicamente expressões múltiplas do que seja extensão universitária. Talvez seja uma das grandes lições do exame histórico: haverá sempre múltiplas formas de pensar e fazer extensão. Esse fato anima um caráter próprio das universidades: a pluralidade e a controvérsia. Enio Silva (2003, p. 14) explica: “por ser uma instituição cultuadora da multiplicidade de ideias, vive em situação conflitiva (interna e externamente). A universidade provoca o novo e o deslocamento da ordem, enfrentando, principalmente, os poderes do Estado, da indústria e da cultura”.
Como parte desse mister universitário, importante também ponderar sobre o que pode ser a extensão universitária. A partir da reflexão acerca das experiências concretas, urdir certos indicativos de como fazer extensão universitária. Inicialmente, partimos da ideia geral proposta por Silva (2003, p. 57): “a extensão ainda não ocupou uma posição clara na universidade e não tem autonomia”. Compreende que precisa haver “critérios claros” para orientar o campo da extensão. Procuramos sintetizar alguns desses critérios elaborados nas passagens como extensionista desde o ano de 2004.
Primeiro, a extensão pauta-se por uma mediação específica com a sociedade, já que ensino e pesquisa também são trilhas de trocas com o mundo externo. Sua especificidade está na partilha da cultura de saberes com aqueles segmentos sociais distantes deste capital simbólico bem como com aqueles que promovem ações de interesse social (escolas, hospitais, instituições sociais, ongs, movimentos sociais, associações etc.). Logo, a extensão oportuniza a partilha do cabedal intelectual com a finalidade da promoção de algum desenvolvimento social (não compreendido como assistencialismo social). Desenvolve ações coletivas com instituições públicas e privadas, grupos, movimentos sociais e associações a fim de uma partilha democrática dos saberes, técnicas e tecnologias sociais. Este critério da partilha pública para atender interesses coletivos é fundamental. A extensão está a serviço do bem social e não para atender interesses de indivíduos.
Assim, a extensão oportuniza a realização concreta e plena do conhecimento: promover desenvolvimento social justo. Diferentemente de um assistencialismo ou marketing social, a extensão realiza, em última instância, o dever social do conhecimento: servir à humanidade. Como bem pontua Gurgel Rocha, “em uma dimensão de mudança social na direção de uma sociedade mais justa e igualitária, a extensão tem a obrigatoriedade de ter uma função de comunicação da universidade com seu meio, possibilitando, assim, a sua realimentação face à problemática da sociedade, propiciando uma reflexão crítica e uma revisão permanente de suas funções de ensino e pesquisa. Deve representar, igualmente, um serviço à população, com as quais os segmentos mais conscientes da universidade estabelecem uma relação de troca ou confronto de saberes” (1986, p. 170 apud SILVA, 2003, p. 80). Ao construir relações de troca com a sociedade, a universidade também é desafiada a refletir sobre suas políticas de ensino, pesquisa bem como as de extensão: que demandas os atores sociais estão apresentando? O sistema de ensino superior consegue responder a essas demandas? As pesquisas estão dialogando com os anseios variados da sociedade? A extensão oportuniza uma realização plena das potencialidades dos saberes?
Essa “função de comunicação” não é unilateral. Não é a universidade que leva os pacotes fechados de saber e serviços. Precisa haver reciprocidade nesse processo comunicacional. Há necessidade de reavaliar os programas de ensino, pesquisa e extensão conforme a dinâmica da própria sociedade. O capital cultural acadêmico precisa mover-se frente à dialética social. Por outro lado, essas trocas revigoram o próprio fazer acadêmico: oportunizam exames críticos permanentes de suas ações (não custa lembrar que a crítica do conhecimento não é marcada por um consenso, tampouco está acima das disputas de poder na sociedade).
Creio que essa função de mediador social entre universidades e sociedade é a grande função da extensão. Fomenta um exame crítico sobre os fazeres acadêmicos e seus reflexos para a sociedade no sentido de colaborar com a construção de uma sociedade plenamente democrática e justa. Por essa razão, as universidades precisam dar maior atenção para as políticas extensionistas: elas contribuem de modo amplo com uma avaliação das ações acadêmicas pelas trocas que mantem com a diversidade de atores sociais. Assim, é fomentada uma rede ampliada de produção e troca de conhecimentos.
Assim, a extensão possui a potencialidade de experienciar uma dimensão cara à formação das pessoas: a vivência plena de uma cultura cidadã. Todos os atores envolvidos em ações extensionistas são instigados a se ver, pensar e projetar-se como cidadãos comprometidos com a vida pública. Para além do individualismo alienante e empobrecedor da condição humana, a extensão fomenta identidades democráticas pela experimentação de ações de caráter coletivo e público. Espaço vivo de experimentação de uma cultura cívica e cidadã.
Deve-se pensar também que, diferentemente do ensino e da pesquisa, a extensão não se realiza em salas de aula ou laboratórios apropriados tampouco com um público habituado às rotinas universitárias como os estudantes. Lidamos com espaços, atores, demandas as mais diversas, entre circunstâncias imprevisíveis e avessas ao rigor do planejamento do ensino e da pesquisa. Para além do ambiente burocrático e planejado, a extensão desafia os atores envolvidos (internos e externos) a reinventar-se. Ainda mais num país marcado por desigualdades sociais e tamanhas precariedades.
As vivências e os fundamentos de planejamento dos programas e projetos extensionistas desenvolvidos são plurais e desafiadores para uma instituição burocrática. As mediações com os atores sociais exigem práticas educativas criativas e inovadoras. Os tempos são outros (por vezes, ocupam os finais de semana). Os espaços e condições dadas são diversos e, nem sempre, as mais desejáveis. Há múltiplas expectativas. Também os saberes em relação são distintos. As demandas por respostas concretas e imediatas também são muitas. O fazer extensionista é marcado por características particulares que, geralmente, é desconhecido pela comunidade acadêmica e gestores.
Assim, é preciso pensar que, diferentemente da pesquisa e do ensino, a extensão tem um modus operandi próprio que envolve uma logística, recursos e planejamento estratégico bastante diferenciados. Não se pode imaginar que os programas e projetos de extensão serão feitos somente tendo como base a boa vontade de professores e estudantes comprometidos. É preciso investir recursos financeiros para a realização das políticas extensionistas.
Neste sentido, as práticas extensionistas são um rico cadinho para estudantes e professores universitários pensarem suas atividades. Por parte dos discentes, os trabalhos extensionistas animam suas reflexões sobre os campos de atuação profissional, sentidos concretos sobre aqueles saberes e técnicas que estão apreendendo e, principalmente, sobre suas inserções no mundo como sujeito humano e cidadão. Entre os docentes, cremos que a extensão é bastante provocativa: sugere revisões sobre suas atividades de ensino e pesquisa; fortalece certas convicções e posturas; estimula um posicionamento vivo e crítico frente aos desafios do mundo; projeta novas ideias sobre as missões da universidade. Esses exercícios de auto-exame são fundamentais para as caminhadas acadêmicas: “o professor é instigado a sair do formato do ensino muitas vezes transmissivo e linear para adentrar em outras possibilidades formativas, ampliada pela perspectiva de outras formas de relação com o conhecimento e com a formação” (RIBEIRO; MENDES e SILVA, 2018, p. 336).
Nesse sentido, é preocupante perceber a pequena participação de estudantes nas atividades de extensão. Na UERN, segundo dados levantados por Mayra Ribeiro, Francisco Mendes e Etevaldo Silva (2018, p. 335), “temos anualmente percentual de aproximadamente 3,34% alunos/ano em um universo de 12 mil alunos participando de atividades de extensão”. Esse dado é bastante contrastante com a meta estabelecida pelo Plano Nacional de Educação (2014-2024) e aprovada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE/CES, resolução n°7/2018) – “Art. 4°: As atividades de extensão devem compor, no mínimo, 10% (dez por cento) do total da carga horária curricular estudantil dos cursos de graduação, as quais deverão fazer parte da matriz curricular dos cursos”. O mais preocupante é o prazo estabelecido para tal normativa entrar em vigor: três anos a partir da aprovação da resolução em dezembro de 2018 (CNE/CES, resolução n°7/2018, art. 19)[i].
Importante salientar também que a extensão amplia os debates sobre os conhecimentos. As ciências são plurais, os conhecimentos também o são. Dialogar com a sociedade amplia a reflexão sobre os diversos saberes, como eles ganham sentido na práxis cotidiana, que papeis cumprem na vida das pessoas, que desafios vivenciam para tornar-se referências significativas para os diversos atores sociais. As sociedades reflexivas (GIDDENS, 2002) reinventam-se a partir dos movimentos dos saberes. “[...] a complexidade do mundo nos convoca a pensarmos e fazermos práticas educativas com inspiração em epistemologias que rompam com a fragmentação, com a separação sujeito/objeto, razão/emoção” (RIBEIRO; MENDES e SILVA, 2018, p. 336).
No mesmo sentido, é preciso discutir e construir metodologias de avaliação das ações de extensão. Para além dos dados quantitativos (recursos, número de projetos e programas, quantitativo de populações assistidas, estudantes, professores e técnicos envolvidos, parcerias mantidas, distribuição das ações entre as diversas áreas de saber acadêmico bem como suas modalidades, distribuição geográfica das ações feitas etc.), importante compreender qualitativamente os resultados das suas ações (expectativas e mudanças nas vidas de professores, estudantes e técnicos extensionistas; expectativas dos parceiros e atores sociais; mudanças nas realidades dos participantes externos; conhecimentos e sistematizações produzidos; reflexos nas pesquisas e atividades de ensino etc.). Os processos avaliativos contribuem com uma compreensão ampliada, sistemática e rigorosa sobre o que cada universidade faz no campo da extensão e seus reflexos tanto internamente como externamente.
Esse exame sucinto buscou ressaltar algumas ideias e princípios que movem o nosso fazer extensionista. Provocar o debate e estimular os atores a se comprometerem cada vez mais com a extensão. Muitos estudantes deixam de fazer extensão pois desconhecem o quão rico e significativo é essa experiência de troca de saberes e construção de uma sociedade democrática. Que essas palavras sensibilizem-nos ao criar extensionista!
Professor de Sociologia da (Uespi) e coordenador do Humanismo Caboclo.
Referências bibliográficas:
GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
RIBEIRO, Mayra Rodrigues Fernandes; MENDES, Francisco Fabiano de Freitas e SILVA, Etevaldo Almeida.
Curricularização da extensão em prol de uma universidade socialmente referenciada. Revista Conexão UEPG. Ponta Grossa. V. 14, n. 13, p. 334-342, ago-dez 2018. Disponível em: www.revistas2.uepg.br/index.php/conexao/article/view/11018.
SILVA, Enio Waldir da. Extensão universitária no Rio Grande do Sul – concepções e práticas. 2003. 282 f. Tese (doutorado em Sociologia). Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre.
[i] Como não é tema dessa reflexão, reproduzo alguns questionamentos oportunos de Mayra Ribeiro, Francisco Mendes e Etevaldo Silva (2018, p. 336): “como curricularizar a extensão? Qual o perfil de um professor para propor/fazer atividade extensionista? Como proporcionar o protagonismo de tantos alunos em atividades de extensão? Como os alunos dos cursos noturnos, com ampla jornada diurna de trabalho, irão fazer extensão? Qual a estrutura para o deslocamento dos alunos para outros espaços/tempos formativos? Como não fazer da extensão mais uma disciplina do currículo? E, ainda, como ficam os Cursos de Graduação em Educação à Distância nesse cenário? Também deverão realizar atividades de extensão?”.
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