Doutora em Comunicação Social, mestra na área e graduada com habilitação em Relações Públicas, Cicilia Maria Krohling Peruzzo é um dos nomes mais notáveis na produção acadêmica do Brasil e até da América Latina quando o assunto é comunicação nos movimentos populares e contra hegemonia, só para destacar alguns dos temas. Ao longo de mais de 30 anos de pesquisas, Cicilia tem se dedicado em linhas que envolvem comunicação, além de Relações Públicas, na perspectiva crítica e dos movimentos sociais. Peruzzo também estuda Comunicação e Educação, especialmente na esfera da educação informal comunitária.
Natural de Domingos Martins, estado do Espírito Santo, a professora atualmente leciona no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi (São Paulo) e é professora visitante do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ (Rio de Janeiro). A carreira acadêmica teve início em 1977 na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Anteriormente, já havia atuado profissionalmente em empresas do ramo industrial na cidade de São Paulo (Eli Lilly do Brasil Ltda e a Sade Sul Americana de Engenharia).
É autora individual dos livros: Relações públicas no modo de produção capitalista (1982), Comunicação nos movimentos populares: a participação na construção da cidadania (teve três reedições, a última em 2004, a qual está disponível para acesso gratuito na internet), Televisão comunitária: a participação cidadã na mídia local (2007). De obras coletivas, são 12 coletâneas, sendo a última o livro Comunicação popular, comunitária e alternativa no Brasil: sinais de resistência e construção da cidadania (2015) que agrega sínteses de pesquisas de membros do grupo de pesquisa Comuni. Foi conferencista e palestrante em mais de 190 ocasiões no Brasil e em países como Itália, Moçambique, Dinamarca, Portugal, Espanha, México, Bolívia, Colômbia, Chile, entre outros.
Peruzzo é membro de comitês científicos, de pesquisa e tem experiências de coordenação em grupos de estudos na área de comunicação no Brasil e em outros países da América Latina. Dentre algumas de suas atividades, ela Compõe o Comitê de Assessoramento de Artes, Ciências da Informação e Comunicação (AC) do CNPq (2016-2019) e o Grupo Comunicação e Cidadania da Associação Ibero-Americana de Comunicação. Atualmente preside a Associação Brasileira de Pesquisadores e Comunicadores Populares em Comunicação Comunitária e Cidadã (ABPCom) e faz parte do Conselho Curador da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom), da qual foi presidente de 1999 a 2002.
Em entrevista concedida para o site Humanismo Caboclo, a professora fala um pouco sobre alguns conceitos presentes em seus estudos, algumas complexidades colocadas no contexto dos movimentos populares e na construção da cidadania, e ainda sobre o papel da comunicação alternativa e da Educação no Brasil, diante dos desafios impostos pelo contexto político na atualidade.
O.L: Na sua obra são apresentados conceitos importantes sobre comunicação popular, comunitária e alternativa. Existem diferenciações? E como devemos abordar cada uma delas?
PERUZZO: Esse tema não é simples, se não se quiser cair no simplismo. A comunicação popular, comunitária e alternativa está envolta numa historicidade e em interfaces, e, ao mesmo tempo, em especificidades que não podem ser generalizadas. Em elaboração anterior, no texto “Aproximações entre a comunicação popular e comunitária e a imprensa alternativa no Brasil na era do ciberespaço”, publicado na revista Galáxia¹, tentei esclarecer a questão.
Na época falei o seguinte: “Na verdade, demarcações precisas de fronteiras entre elas tendem a não resistir à realidade, que costuma extrapolar os conceitos e dar pistas para sua reformulação, em razão de sua dinamicidade e caráter inter e transrelacionado das relações entre organização-ação social-comunicação. Nas práticas sociais, os processos comunicacionais são holísticos. Não se dissociam de mobilizações mais amplas e podem assumir um hibridismo de linguagem, finalidades, formatos, conteúdos e práticas de produção. Para efeito didático e sem perder outra característica desse hibridismo que é a confluência em termos políticos e ideológicos entre experiências aparentemente distantes, pode-se dizer que as características singulares da comunicação popular, alternativa e comunitária, neste início de século, parecem indicar a existência das seguintes categorias:
Comunicação popular, alternativa e comunitária: trata-se de uma vertente constituída por iniciativas populares (do povo) no contexto de localidades, bairros, comunidades (presenciais ou virtuais), movimentos sociais e organizações civis congêneres sem fins lucrativos. Surgem para suprir necessidades de expressão de segmentos das classes subalternas em suas lutas pelo estabelecimento da justiça social. Constroem uma outra comunicação que se distingue da mídia comercial pelos conteúdos difundidos, formatos, sistemas de gestão, pela participação da população e pelo compromisso com o interesse público. Ela se configura em:
a.1 Comunicação popular e comunitária: processos de comunicação constituídos no âmbito de movimentos sociais populares e comunidades de diferentes tipos, tanto as de base geográfica, como aquelas marcadas por outros tipos de afinidades. É sem fins lucrativos e tem caráter educativo, cultural e mobilizatório. Envolve a participação ativa horizontal (na produção, emissão e na recepção de conteúdos) do cidadão, tornando-se um canal de comunicação pertencente à comunidade ou ao movimento social e, portanto, deve se submeter às suas demandas.
a. 2 Comunicação popular-alternativa: processos de comunicação constituídos por iniciativas que envolvem a participação de segmentos populares, mas não respondem ou são assumidos pela comunidade como um todo. Em geral, são motivados ou viabilizados por organizações não-governamentais (ONGs), fundações, projetos de universidades, órgãos públicos, igrejas etc., mas também podem funcionar a partir de iniciativas autóctones. Tende a se confundir com a comunicação comunitária em decorrência de similaridades, ou mesmo vir a constituir-se como tal.
"A comunicação popular, comunitária e alternativa está envolta numa historicidade e em interfaces, e, ao mesmo tempo, em especificidades que não podem ser generalizadas"
Do nosso ponto de vista, o elemento principal que caracteriza a comunicação como popular, comunitária e/ou alternativa está no processo, nas práticas sociais, nas relações que se estabelecem, e não nos veículos ou meios utilizados, nem em outra característica qualquer (linguagem, veículo, propriedade, formato) tomada isoladamente. O que importa é o conjunto da práxis, a qual tende a conjugar mais de um dos elementos, porém não necessariamente todos eles simultaneamente. A comunidade pode não participar diretamente da gestão, mas pode ter espaço para programas, participar das reuniões de pauta etc. Pode não participar das reuniões de pauta, mas ter voz ativa na programação e desfrutar da propriedade coletiva, uma vez representada por entidades sem fins lucrativos da localidade.
b. Imprensa alternativa: trata-se de uma vertente que reúne processos de comunicação basicamente jornalísticos, que podem assumir feições mais amplas, de caráter autônomo, e, por natureza, não alinhados aos padrões dominantes dos meios de comunicação, governos e demais setores que representam as classes dominantes. Os veículos alternativos de maior porte se constituem em alternativa frente à mídia convencional enquanto fontes de informações. Pelas características específicas de alguns de seus segmentos, podem ser agrupados em:
b.1 Jornalismo popular-alternativo (ou de base popular): efetiva-se de modo participativo, uma vez ligado a movimentos populares, associações, entidades ligadas a setores progressistas de igrejas, ONGs etc., se configura e circula no mesmo universo da comunicação popular e comunitária.
b.2 Jornalismo alternativo colaborativo (de informação geral ou especializada): se ocupa, fundamentalmente, em transmitir uma visão diferenciada e crítica dos acontecimentos que normalmente já são tratados pela grande mídia, além de temas omitidos por ela. Pode também tratar especificamente de política, economia, questões locais, questões juvenis, crítica aos meios de comunicação e assim por diante”.
O.L: Eu percebo que há confusão na utilização do termo popular. Gostaria que você explicasse sobre o porquê dessas utilizações e como devemos abordar este termo dentro da perspectiva que você traz em suas pesquisas.
PERUZZO: O termo popular é realmente de uso problemático, já que representa algo muito característico da realidade do Brasil e de muitos outros países da América Latina. Termo de difícil tradução para outros idiomas, como por exemplo o inglês, cuja palavra, se tomada no sentido literal, não traduz o que é popular e o que é a comunicação popular. A comunicação popular diz respeito à comunicação do povo, mas dos segmentos populares empobrecidos desse povo, em processo de mobilização e organização em defesa de seus direitos. Carrega algo de revolucionário pois é dissonante à comunicação majoritária das mídias corporativas e se relaciona com os processos de emancipação cidadã, embora não esteja pregando a revolução, com raras exceções. Enfim, essa comunicação popular às vezes assume a cara de alternativa, outras vezes de comunitária, conforme os processos históricos situados nos lugares onde se concretiza, e, ainda, como decorrente das linguagens usadas para denominar esses mesmos processos.
O.L: Existem também diferentes visões do conceito de cidadania. Qual a que você adota e como podemos percebê-la em nosso cotidiano e nas práticas populares, comunitárias e alternativas?
PERUZZO: Oh gente! É um tema para um livro! Apenas simplifico dizendo que a cidadania diz respeito a se ter os direitos respeitados – direitos da pessoa, direitos cívicos, direitos sociais, direitos legais e constitucionais. É também poder lutar para que seus direitos e os de todas as pessoas e das demais esferas sócio-ecológicas sejam respeitados. É, ainda, ter a consciência não só dos direitos, mas também dos deveres, ou seja, de contribuir para que a plenitude da cidadania seja possível, realizada e aperfeiçoada (ampliação da qualidade da cidadania) sempre. Ela pressupõe a dimensão civil (nível dos direitos) e a dimensão cívica (nível das obrigações) ou dos deveres para assegurar o respeito aos interesses coletivos do conjunto da sociedade e da humanidade.
O.L: Sabemos que a visão sobre comunicação nos movimentos populares não está totalmente dependente dos veículos que são utilizados. Desse modo, o que se destaca como sendo fundamental nos processos comunicacionais populares e comunitários?
PERUZZO: É fundamental reconhecer as múltiplas formas e meios de comunicação popular que se entrelaçam aos processos de consciência-organização-ação cidadã. Os canais tecnológicos são importantes, mas os processos comunicativos interpessoais e grupais – presenciais ou a distância – também o são e, muitas vezes, proporcionam de forma ainda mais eficiente o estabelecimento da comunicação, o comum, estabelecendo o verdadeiro sentido da palavra comunicação.
"Difusão de informação é diferente de estabelecer comunicação"
O.L: Nas duas últimas décadas tivemos, no Brasil e na América Latina, a ascensão de governos abertamente favoráveis com causas progressistas e de esquerda. Por outro lado, alguns setores dos movimentos sociais fazem duras críticas com relação aos avanços que tivemos quanto aos apoios aos veículos alternativos e com posicionamentos mais críticos. Até onde você percebe que avançamos ou deixamos a desejar ao longo desse período?
PERUZZO: A crítica faz sentido se o apoio significar subserviência político-ideológica. Ele é necessário e possível de ser usufruído, com autonomia, uma vez estabelecidos critérios e clareza política estratégica, ou seja, visão de longo prazo tendo em mira os interesses cívicos da coletividade.
O.L: Atualmente, como você tem percebido o comportamento do jornalismo alternativo e da mídia alternativa em geral frente ao cenário político brasileiro?
PERUZZO:
São respiros da sociedade para escapar das visões que não revelam os acontecimentos em todas as suas faces e interfaces. O jornalismo alternativo e as mídias as alternativas progressistas são fundamentais porque trazem à tona outras visões e versões – críticas e como vozes dos atores em posição desfavorável no cenário político – distintas daquelas mediadas pelos canais convencionais dominados pelo poder econômico e político que domina o curso da história.
"São respiros da sociedade para escapar das visões que não revelam os acontecimentos em todas as suas faces e interfaces"
O.L: Você acha que nesse ambiente de disputas discursivas os comunicadores populares têm conseguido se comunicar com mais pessoas ou estão reféns de falar somente para aqueles que já estão familiarizados com as pautas progressistas? Você tem algum exemplo que possa nos dar para ilustrar a resposta à esta pergunta?
PERUZZO: Sim. O empoderamento de tecnologias como a do rádio, da televisão, do jornal, do vídeo e das mídias sociais digitais vem, progressivamente, amplificando o alcance da difusão de conteúdos e estabelecendo redes que fazem a diferença no exercício do poder de comunicar por parte dos movimentos sociais populares. Os movimentos e as associações comunitárias sempre souberam se apropriar da tecnologia disponível de cada – num momento o modesto boletim informativo, em outro o rádio, o vídeo, e, atualmente, a internet. São as vozes cidadãs e essas ajudam a sociedade avançar na perspectiva da cidadania. Exemplo: Rede Justiça nos Trilhos (atuação do Maranhão e no Pará).
O.L: Como a comunicação popular, comunitária e alternativa no Brasil tem se comportado nos ambientes virtuais e de popularização da internet? Você acha que barreiras foram superadas e essa comunicação conseguiu chegar mais longe? O que ainda falta?
PERUZZO: Trata-se de um processo em constante aperfeiçoamento. Nem todas as barreiras foram superadas, mas é crescente a inclusão de ambientes comunicacionais na internet como parte das estratégias comunicativas. Trabalhei um pouco esse tema no artigo “Possibilidades, realidade e desafios da comunicação cidadã na Web”, publicado na Revista Matrizes, no final de 2018². Contudo, há que se ter a clareza de que, sabiamente, nem tudo sobre suas ações e estratégias é difundido nos perfis das mídias sociais digitais ou nos próprios sites e blogs dos movimentos sociais populares.
O.L: Você acha que os movimentos populares estão se comunicando bem com as juventudes, tendo em vista a influência do conservadorismo nessa camada da população? Onde você considera que esteja o ponto central da questão?
PERUZZO: Sinceramente, tenho minhas dúvidas. Os movimentos e organizações populares que trabalham diretamente com a Juventude, considero que sim, que estão se comunicando muito bem com elas. Haja vista, por exemplo, a associação civil Viração que cuida da Revista Viração e da Rede Brasil Jovem. Contudo, é necessário perceber que a comunicação com as juventudes não é uma questão de responsabilidade apenas dos movimentos sociais populares, que aliás não alcançam a todos nem a todas as juventudes. Existe um conjunto de atores que interferem na formação de visões – das famílias às escolas e igrejas, dos meios de comunicação tradicionais aos formadores de opinião dispersos das mídias e redes sociais digitais na internet (pessoas das redes de contatos, youtubers etc.) e assim por diante, que acabam disputando a difusão de conteúdos e a assimilação de saberes. A complexidade é cada vez maior tanto para se compreender esse mundo, quanto para estabelecer as diferenciações e aproximações necessárias dos fenômenos atuais.
O.L: E como professora, o que você sente e percebe do nosso cenário educacional e especialmente da educação pública no Brasil?
PERUZZO: Percebo o cenário em perigo diante da tendência atual de esvaziamento dos direitos constitucionais à educação como dever de todos e responsabilidade do Estado. Mas, há sempre a esperança de que o interesse público prevaleça. Os segmentos progressistas da sociedade civil e política saberão interferir para assegurar que o rumo da história avance na direção da ampliação da cidadania e não de sua regressão.
Por Ohana Luize
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