Religião, via de ligação entre o eterno e o efêmero, divindades e humanidade. O sacro, cansado do tédio, vem habitar nossa Babel. As crenças são muitas, populares, desconhecidas, mistas e com um ponto em comum: a racionalidade nunca basta. Mas religião não somente liga. Estabelece regras e condutas, mexe com o imaginário. Tirem-nos os deuses e o que sobrará?
O ser religioso é diverso e o exercício da fé, sua manifestação, percorre caminhos distintos. Na casa de Francisca Vivian Sena, 29 anos, ela se acha presente, ainda que de forma contida. Seja na frase “Deus abençoe esta casa”, escrita em uma placa acima da “porta da rua”, seja na imagem de São Sebastião que testemunha a conversa tida com ela e sua prima Antônia Flávia Sardinha, 28 anos, (ambas umbandistas pertencentes à tenda de pai Nonato).
Francisca Vivian mora, com o marido e dois filhos, na rua Santa Teresinha, bairro Goiabal, periferia de Pedreiras, Maranhão. O lugar, popularmente conhecido como Piçarreira, é predominantemente habitado por negros, muitos deles praticantes da Umbanda. Ao contrário dos templos católicos e evangélicos que ocupam o centro da cidade, os terreiros estão localizados em comunidades quilombolas distantes da dinâmica urbana.
“É de família. Minha mãe começou a ir, me levava. Aos 10 anos comecei a passar mal na tenda de Zé William”, explica Francisca. “Meu tio faz parte e alguns ancestrais meus já faziam parte disso”, destaca Antônia Flavia. A religião neste contexto ocupa um espaço maior, um sentido mais amplo. É um elo com o passado, com os antepassados.
No Maranhão a presença negra e as marcas culturais das ancestralidades africanas é notória. Um tapa na cara dos livros didáticos e suas narrativas minimalistas sobre a dinâmica escravista. Não se tratavam de pessoas pegando carona para o “novo mundo”. Diz respeito a homens e mulheres arrancados de seu território, apartados de tudo aquilo que pavimentava suas histórias. Os navios europeus transportaram corpos negros constituídos de identidade, ciência popular e fé. As práticas religiosas oriundas da África resistiram, em especial pela via do sincretismo, à imposição da fé católica no processo de colonização. Mas, assim como a fé do povo negro, a intolerância se faz longeva em um Estado que se diz laico.
“Em 2015 trabalhava em uma casa em São Luís. Vim participar do festejo e voltei levando as fotos no meu celular. Uma menina que trabalhava comigo viu e perguntou sobre. Depois de uma semana meu patrão começou a falar: “negócio de macumba”, essas coisas, que não acreditava e que era coisa do demônio. Dias depois me despediu e creio que tenha sido por causa disso”, descreve Antônia Flavia. Diante do comportamento do patrão preferiu calar.
“Ser umbandista não é coisa do Diabo. A gente vai porque se sente bem, gosta. Particularmente eu gosto”, pondera com ênfase Francisca Vivian após ouvir o relato da prima.
Só em 2018 foram registrados 506 casos de discriminação religiosa no Brasil, apontam dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH). Os números, entretanto, não desapontam a jovem Wilderlane da Silva Viana, que mora ao lado de um terreiro dedicado a Santa Bárbara, mantido por seu pai, José William, na comunidade quilombola Morada Nova, município de Lima Campos.
“Uma professora falou que meu pai todo ano fazia passeata em Lima Campos e todas as vezes em que fazia essa macumba morria alguém na cidade. Ela sempre colocava a culpa no meu pai. É coisa de gente que não tem o que falar, não entende de Umbanda e fica falando besteira. Ela era crente e crente tem isso com nós da Umbanda”. E acrescenta: “Tem alguns católicos que ainda têm uma pulguinha atrás da orelha, como dizem, mas eles entendem mais a gente”.
Enquanto aguarda a data de seu batismo, Wilderlane da Silva Viana procura aprender mais sobre a Umbanda tomando como referência os ensinamentos de seu pai. Sobre si repousa o peso da continuidade, o legado familiar. Não há na comunidade outros jovens com quem possa dividir a responsabilidade e partilhar as experiências. O êxodo rural impôs a cidade para muito dos seus. Com isso os festejos anuais são bem mais que encontros entre o humano e o divino. Para parte da família de Wilderlane, é um retorno ao lar.
Ela conserva a memória de quando incorporou pela primeira vez, descreve sob a sombra do alpendre, partilhando palavras e gestos. “Pra mim foi uma sensação horrível. Só que depois que a gente se acostuma, é muito bom. Eles (os espíritos) ajudam a gente em muitas coisas. Sofria e depois que incorporei melhorei e muito”.
Nos terreiros, cada umbandista assume uma função. Os festejos são o ápice das tradições: costumam durar dias e noites e reúnem adeptos do terecô de diversas partes do estado. Cotidianamente há reuniões e sessões que recebem aqueles que buscam auxílio espiritual.
Os ritos parecem casar o improvável: o santo, o profano e o encanto. A cor forte dos trajes, a cadência acelerada dos tambores marcam momentos feitos de dança, incorporações e cachaça.
Para Vivian e sua prima Flávia, a Umbanda prega “paz, respeito, sabedoria, entre outras coisas”. Já para Wilderlane, “é um ato de ajuda, porque os orixás são pessoas que a gente não vê, não conhece, mas nos ajudam muito. Tudo o que a gente precisa eles estão ali para nos dar força. Aprendi com meu pai e minha mãe que umbanda é paz, amor, é um momento de vocês conhecer outras pessoas da sua religião. Umbanda é uma família”.
A África arrancada do território continua viva, suas raízes não se perderam. Seu conhecimento, arte e atabaques perpassam a história do Brasil. Emicida foi feliz ao cantar em Mufete: “Esquece o que o livro diz, ele mente. Ligue a pele preta a um riso contente. Respeito sua fé, sua cruz, mas temos duzentos e cinquenta e seis Odus. Todos feitos de sombra e luz, bela. Sensíveis como a luz das velas”. Os terreiros dizem muito sobre o Brasil que por vezes os livros ignoram. Por Joaquim Cantanhêde
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