No tocante às questões ambientais e indígenas, durante a 74ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York (EUA) no dia 24 de setembro, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) afirmou que “o clima seco e os ventos favorecem queimadas espontâneas e criminosas. Vale ressaltar que existem também queimadas praticadas por índios e populações locais, como parte de sua respectiva cultura e forma de sobrevivência”.
Os incêndios na Amazônia e em outras regiões de mata nativa no país tomaram conta do noticiário nos últimos meses. Em posição de enfrentamento ao desmatamento desenfreado por madeireiros e setores do agronegócio que realizam a queima de terras para venda, populações indígenas, longe de promoverem ecocídio (termo reconhecido em 2016 pelo Tribunal Penal Internacional como crime contra a humanidade), mantêm tradições e organizações comunitárias em defesa do meio ambiente, dos animais, pelo reconhecimento de suas identidades e preservação das terras e povos originários. Diante disso, se percebe um embate entre as declarações dadas nos microfones internacionais com o que defendem lideranças indígenas.
No Piauí, uma jovem liderança indígena é Dinayana Kelly Uchoa do Nascimento. Ela é a primeira descendente autodeclarada a cursar o ensino superior na Universidade Federal do Piauí (UFPI), tendo iniciado os estudos na Licenciatura em Educação do Campo no ano de 2016. Oriunda da comunidade indígena Tabajara, localizada da cidade de Lagoa de São Francisco (norte do Piauí), Dinayana contou ao Humanismo Caboclo essa história de pioneirismo, luta, ancestralidade e os sentidos coletivos que faz questão de carregar nas falas, opiniões, estudos e ações.
Se a visão colonizadora insiste em apagar a história indígena ou distorce o que é ser índio no Brasil e no Piauí do século XXI (pois sim, no Piauí tem indígenas vivos!), Dinayana segue se opondo ao silêncio e diz “seria muito diferente se eu não me identificasse como indígena. Não que seria mais fácil, mas a luta teria tido outro caminho totalmente diferente”. Confira como tem sido esse caminho até aqui.
Humanismo Caboclo: Você é primeira descendente autodeclarada de uma comunidade indígena a ingressar na Universidade Federal do Piauí, em 2016. O que esse fato de te diz sobre a postura do Estado diante de urgências das minorias?
Dinayana: O Estado sempre... pelo menos, desde quando começou a ter esse modo de organização, desde começou a ser Brasil, o Estado é uma coisa muito distante da realidade que a gente tem. A gente é composto de multiculturas, a gente é muito diverso. E o Estado, mesmo tendo na Constituição que todos nós temos acesso à educação, saúde, terra, tudo... Mas, para as minorias terem acesso a cada direito desse, foi tanta luta, tanta morte, tanto sangue derramado... E a gente tem que derramar ainda mais sangue para ter acesso. Então, para ter acesso à universidade, a gente tem que batalhar demais, porque ela não é feita para todos. Mesmo que tenha na Constituição. A gente tem que batalhar um bocado para ter acesso às coisas que, pra uma classe, para uma determinada classe, isso é facílimo. Isso é privilégio, né? Pra se vê: eu sou uma. Eu entrei em 2016. Mas já tem outros indígenas na universidade também. Já teve vários mais autodeclarados nesse período, até reconhecidos pela FUNAI... Não quero me destacar como a primeira. Já estou lá. Já estou fazendo minha luta, fazendo minha parte, representando a minha identidade, a minha coletividade (aqui também é da comunidade). Eles facilitam o acesso para uns, facilitam para outros, mas, quando é para as minorias, eles travam tudo. Então, é como se a gente tivesse que obedecer e aceitar tudo o que o Estado, entre aspas, o “Estado” nos dá. Mas, não é garantia de nada. Até nossos direitos que já foram conquistados não são garantidos, porque há uma ameaça constante. Uma ameaça a nossa existência, ameaça aos nossos direitos conquistados. Então, o Estado se põe como superior e cerceador de todos os nossos direitos e também como existência dentro do Brasil.
HC: Você acredita que seria diferente entrar na universidade sem essa declaração identitária? Por que?
Dinayana: Assim, o processo de entrar foi como “população do campo”. As nossas populações do campo são muito diversas, multiculturais. Então, temos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, sem-terra. Todos nós somos do campo. E, como eu já vinha de uma EFA, e o processo seletivo era direcionado a povos do campo, então, entrei como “povo do campo”. Não entrei como indígena. Tinha a luta na minha comunidade e tudo mais, mas, para entrar, participar do processo seletivo, não. Mas, assim que pus os pés na universidade, já começou. Então, outras pessoas já me conheciam, antes de 2016. Em 2015, a gente participou da Semana de Povos Indígenas, na universidade. Aí, eu já tinha uma organização dentro da minha comunidade, já era efetiva no movimento e em questões de luta. E, logo que eu pus os pés, eu já fui... Se até então, nesse tempo, a gente não tinha um movimento que não ecoava em outros setores do Piauí. Até hoje tem muita gente que pensa que não tem indígena de jeito nenhum. Desde 2015, a gente já estava organizado e, para mim, foi um peso muito grande também, porque é exigido muito: quem é indígena, quem se autodeclara indígena. Tem um estereótipo muito grande. Demais, demais, demais! É posto muita pressão (seja também o indígena que mora na oca). A gente, porque é indígena, não tem acesso a essas tecnologias. Acredita-se que é uma cultura diferente das outras, que eu não posso ter acesso a outras culturas também. Isso é totalmente errado! Se não podia ter acesso a outras culturas, quer dizer que eu também não podia ter acesso à educação, à universidade, já que isso não é da cultura do indígena. Então, são muitos questionamentos. Desde o momento que eu entrei, eu já comecei a me bater com essas dialéticas, com esses problemas da sociedade. E seria diferente? Seria. Porque eu tenho muitos privilégios por ser branca, mas eu não tenho privilégios por ser mulher nem privilégio por ser indígena. E aí: “ah, tu tá aqui só porque tu é branca!”. É muito pesado. São questões que até a gente fica doido! São muitas pressões, muitos estereótipos, preconceitos, exigências que a gente siga um determinado caminho, que a gente não poderia estar na universidade. Seria muito diferente se eu não me identificasse como indígena. Não que seria mais fácil, mas a luta teria tido outro caminho totalmente diferente. Eu acho que foi muito importante ter entrado na universidade e ter feito isso, porque, eu me autodeclarando, eu faço uma diferença enorme na minha comunidade. Então, quando outros jovens, outras crianças me verem lá e me reconhecerem, em qualquer lugar que eu esteja, é um fortalecedor de identidade minha e delas. Então, eu acho um diferencial. Se eu não me autodeclarasse, não haveria tanta importância na minha luta. Se eu luto por isso, eu tenho que me identificar com isso. Então, eu me identifico muito mais para agradecer e pra fortalecer a cultura da minha comunidade. E fazer referência a toda luta, todas as mortes, a todo o sofrimento que os povos indígenas do Piauí tiveram. Então, eu tô aqui graças a essa luta. Mesmo que a gente tenha sofrido muito, mas eu tô aqui por isso. Então, eu tenho que fazer referência a isso.
HC: De que forma a comunidade assimila sua conquista?
Dinayana: Eu acredito que muito positivo, porque, a partir desse momento que entrei na universidade, eu pude conhecer outras pessoas, que a gente pode partilhar com outros setores na universidade. Então, teve muita pesquisa com os arqueólogos e antropólogos da universidade. A gente fez uma parceria muito boa. E também com relação ao meu curso, já que ele estuda educação contextualizada, eu venho aprendendo muito, compartilhando muito, levando muita informação também da universidade e tendo essa troca. Foi a partir desse momento também, que eu pude fazer o projeto pro museu e inserir esse modelos de educação contextualizada. Mesmo que na escola da comunidade a gente não tenha essa educação que diga que aqui no Piauí tem indígena, que seja uma luta ainda para valorizar muito a nossa identidade, a própria comunidade, o museu vem ao contrário disso. Ele vem fortalecer a nossa identidade, facilitar as nossas manifestações culturais, vem pra que a gente conheça nossa história e que a gente se mantenha sempre vivo e ressignificando os nossos valores, ressignificando nossos costume aqui dentro da comunidade. Então, foi uma coisa muito significativa porque eu tô lá. Eu vou e volto porque meu curso tem a metodologia da alternância – tem o tempo comunidade e o tempo universidade. Sempre a gente tá em projeto, fazendo intervenção na comunidade, fazendo coisa na comunidade, levando isso pra universidade em forma de conhecimento, mas trazendo conhecimento da universidade para cá também, que o mais importante é haver essa troca.
HC: Qual a realidade da comunidade Nazaré? Quais as carências e potencialidades? O que você sonha para sua comunidade?
Dinayana: A comunidade, há um tempo atrás, não estava tão organizada na questão da luta indígena, mas a gente já teve um avanço muito grande até 2019. De 2015 pra cá, foi quando a gente se reuniu com outras populações no Piauí, como outros povos indígenas, a gente já teve um avanço muito grande em relação à luta mesmo dos indígenas. Mas, em relação ao Estado, a gente ainda está engatinhando: é muito processo de luta e construção. Então, a realidade da comunidade, hoje, tem mais de cem famílias que já se identificam. Isso é resultado da nossa luta, de entender e de explicar também, porque tem uma herança de que a gente não pode se autoidentificar indígena pela questão cultural em que a gente está inserido. A comunidade vem de um histórico de violência das populações indígenas. Então, se identificar como indígena é uma questão muito dolorosa, além do preconceito, do racismo e tudo mais. Dentro mesmo da própria comunidade por não entender a nossa história. A partir do momento que a gente começou a se reconhecer, a gente começou a pesquisar ainda mais sobre nossa história. Conversar com os mais velhos, isso trouxe mais da nossa história, muito mais a nossa identidade e a gente conseguiu se fortalecer. Então, com toda essa potencialidade, a gente tem o nosso museu, primeiro museu indígena do Piauí, o museu Anísia Maria. As carências continuam ainda na educação, na saúde, na terra que a gente não tem. A gente não tem terra demarcada, não tem nenhuma no Piauí ainda. A gente não tem nenhuma organização da Funai aqui no Piauí. A gente tem assistência da coordenação regional do Ceará que ela atende mais dois Estados: Ceará e Rio Grande do Norte. Ainda há uma carência muito grande quanto à educação, quanto à cultura, à saúde, a direitos de terra, à previdência, a muitas coisas que a gente ainda tem muita carência... O governador prometeu num fórum de museus aqui na minha comunidade, um dos maiores sobre museologia, prometeu que ia ajudar nessa construção. Até hoje! O fórum foi em 2017, estamos em 2019. Eu sonho que nosso museu esteja construído, a nossa oca também esteja construída, que o nosso espaço de manifestação cultural se amplie, que a gente possa ter, dentro da escola, mais educação contextualizada, mais espaço pra poder discutir essas relações, que nossas crianças tenham acesso à educação, eles se identifiquem e tenham orgulho de ser indígenas e que tenham respeito também. Então, o que eu sonho pra comunidade é isso: mais organização, mais acesso à educação principalmente, que a gente consiga também ter uma escola indígena dentro da comunidade pra gente fazer... que seja uma educação multicultural, não intercultural... pra gente ter um espaço aqui e fazer as coisas aqui. A gente quer receber vocês também, a gente quer ir pra outras, pra ter essas trocas... Que as crianças estudem também: que aqui no Piauí tem populações indígenas, que aqui no Piauí aconteceu isso, isso e isso, que a gente entenda a história do Piauí (não a que é contada, que é preferível contar, essa dos heróis, dos fazendeiros, donos de terra, tudo mais). Que eles não sejam tão valorizados porque eles massacraram todos nós.
HC: De que forma a comunidade procura preservar suas práticas culturais?
Dinayana: Principalmente, através do museu, porque não é só o espaço de colocar as peças mais antigas. No museu, a gente faz atividades, com o núcleo educativo, a gente faz muitas atividades, tanto de resgate cultural, quanto de significação. A gente faz oficina com trançado de palha: a gente convida os mais velhos, os que sabem fazer, praticar isso. Então, a gente ensina pra juventude. Tem essas oficinas: todas essas questões artesanais, de medicina popular, medicina tradicional... A gente faz isso também, porque acaba, não que perdendo, mas esquecendo, pondo isso de lado... Porque as pessoas pensam que não tem importância, mas tem muita. Isso são nossos traços culturais. Então, quem sabe fazer tarrafa de pescar ensina também pra juventude. A gente facilita esse processo através do museu. A gente faz maraca, ensina a todo mundo fazer maraca (a gente tem oficina disso). Principalmente, pra comunidade. Outras pessoas vêm visitar o museu, também oferta o acesso a essas oficinas: pintura corporal (o grafismo indígena), os brinquedos, tudo isso a gente faz com a prática do museu. A gente revive tudo isso. A gente tem as nossas tardes alegres: a gente faz o toré, a gente tem oca, a gente tem tudo isso. Mas é uma organização. A gente não praticava tanto isso antigamente. A gente deixou muito de praticar, justamente pela vergonha, por essa opressão que existe dentro da comunidade também. Agora, a gente já tá bem avançado, já tá bem diferente. Se a gente comparar há cinco anos, a comunidade mudou bastante. Hoje, a gente já vê jovens organizados, grupos de jovens. Dentro da comunidade, são duas etnias: Tabajara e Tapuio [...] A gente já fazia isso antes. A gente só organizou: as lendas, os mitos da comunidade, tudo isso a gente tá revivendo e registrando tudo no museu. Então, a juventude já tem acesso a tudo isso que, antes, eu não tive acesso (quando eu era mais jovem). Eu sabia da história, meu avô me contava, mas eu não tinha acesso em outros espaços. E, atualmente, não. As crianças já têm acesso a tudo isso.
HC: Em pleno século XXI ainda prevalece a ideia estereotipada dos povos indígenas, como se estivessem alheios às transformações sociais, aos avanços tecnológicos e às mudanças culturais. No seu entender o que é ser indígena? Como mudar essa compreensão social acerca do índio?
Dinayana: Pra mim, ser indígena é, principalmente, valorizar a sua existência, a conexão com a terra, a ter tudo isso na terra e cuidar dela também, das relações com a natureza, relações com o ser humano mesmo, ser humano e cuidar disso. Pensar em sustentabilidade, em proteção do ambiente, proteção dos animais e proteção da espécie humana. Entender que tudo isso não está à toa. Respeitar cada um. Ser indígena é respeitar as diferenças de todos. Ser indígena não é só tá lá na oca, sem ter acesso a essas outras coisas, porque a gente é indígena mesmo com isso: a gente é indígena com celular... O branco não deixou de ser branco porque conheceu a gente, né? O europeu não deixou de ser europeu porque teve junto com o negro e com o índio. E a gente também não deixa de ser índio por causa disso. Então, a gente se transforma: isso é uma verdade. Cultura é isso. Cultura não é uma coisa que fica parada. Ela tá em movimento diariamente. Se entender como indígena é muito sobre fazer referência a quem já esteve aqui, aos nossos antepassados, a toda uma construção, a um sofrimento... Eu falo especificamente aqui da nossa região. Ser indígena hoje não é fácil de jeito nenhum, principalmente porque você lembra de tudo isso. Seria mais fácil a gente não ter destruído tantas populações, não ter tido tanto genocídio aqui, mas... A gente sobreviveu. Esse silenciamento foi uma das ferramentas que a gente utilizou para poder sobreviver, existir também. Então, a gente tá existindo há muito tempo. Ser indígena é valorizar sua cultura, valorizar seu pertencimento, valorizar suas raízes. Como mudar essa compreensão sobre o indígena é difícil demais, porque, para mudar o pensamento do outro, é preciso que o outro queira mudar. A gente não tem como fazer tudo isso, mas, pelo menos, levar nossa mensagem. Acho que é muito disso que a gente tá fazendo, que a comunidade tá fazendo, todos os povos do Piauí estão fazendo: se reconhecer, organizar sua luta, ir pra onde tiver que ir e dizer “eu sou indígena”. Lutar pra isso. A gente tá modificando esse pensamento. É devagarzinho demais, mas é nesse mesmo passo: no passo que a gente se organiza em comunidade, a gente demonstra isso também pro restante da população. A gente vai mudar pouco a pouco, porque não tem como mudar um pensamento de quem não quer mudar. Principalmente na sociedade que a gente vive, mas, mesmo assim, a gente tem que se inserir nesse espaço, tem que se inserir na universidade... Nem que seja à força! Porque isso é direito de todo mundo. A gente tem que ser respeitado em qualquer espaço.
HC: Hoje, mais de 500 anos depois da invasão europeia à América, o que ameaça as comunidades indígenas?
Dinayana: Ainda continua a mesma ameaça, só que com uma cara diferente. Mas a existência está sendo ameaçada. Os nossos territórios estão sendo ameaçados. Ameaçados não! Já estão sendo destruídos. A terra, ter dentro das escolas um currículo que seja contextualizado. Muitas das conquistas dos povos indígenas estão sendo retiradas. Por exemplo, a FUNAI que é uma instituição de fortalecimento da luta indígena, cada dia que se passa, tem menos funcionários, menos equipes de trabalho... Então, o Estado está tirando, de onde dá pra tirar. É um ponto de ameaça. Não só aqui no Nordeste, no Brasil todo é uma ameaça muito grande à existência, a ter seu território. Dizem: “pra que um grande território se eles não produzem?”. Mas não: tem indígena que tem roça e é uma relação com o território totalmente diferente que as pessoas pensam. O território é aonde meus antepassados viveram, é aonde a gente pratica nossas manifestações culturais, é além de município e tudo isso. Então, quando você tira isso, você não tá agredindo só o indígena vivo, você tá agredindo uma história completa, uma história toda, de todos os antepassados dos indígenas que viveram, que passaram naquele território.
HC: O atual presidente tem falado sobre integrar o índio à sociedade. É uma ideia compatível com as demandas dos povos indígenas?
Dinayana: Esse negócio de integrar é uma ideia que sempre se teve e, já que o indígena tinha a cultura dele, então integrar o índio à sociedade é uma forma de desconsiderar, entre aspas aculturar o indígena, e considerar ele branco. Quando se integra o índio à sociedade é uma ideia em que a gente deixe de manifestar a nossa cultura. Não é uma ideia compatível com as demandas dos povos indígenas. A gente não quer se integrar porque, quando se integra, ou a gente é indígena e não pode ter acesso a essas outras culturas, ou a gente entra, imerge nessa outra cultura e perde muito da nossa. Essa ideia não é a dos povos indígenas. A nossa ideia é que a gente seja multicultural, que a gente possa trocar isso e a gente possa ser indígena. Então, essa ideia de integrar é muito... entre aspas, só pra branquear a população, pra poder não ter essa exigência de educação contextualizada, pra poder não ter diferenciação em saúde, pra não ter essa questão de território diferenciado. Então, essa integração é somente uma ideia pra poder não dar direito aos povos indígenas.
HC: Que importância tem o ensino superior frente à realidade social que te abarca? Como tem sido as vivências na universidade? Os jovens de sua comunidade sonham com essa possibilidade?
Dinayana: Acho que foi uma abertura de portas muito grande. Principalmente, em relação à luta, conhecer outras pessoas e outras lutas também. Foi muito bom pra minha formação, muito bom pra construção de minha identidade também. Estar na Universidade Federal do Piauí... Muitas pessoas falam – “ah, não sei o quê!”. Não e por estar na Universidade Federal. Em qualquer instituição de ensino superior é muito difícil chegar lá. A gente já começa a não ter acesso ao Ensino Fundamental, a não ter acesso ao Ensino Médio. Então, muitas pessoas vão saindo nesse meio do caminho porque não são garantidas a permanência e seguimento até o ensino superior. É uma vitória também: não só minha, mas de toda a comunidade que se organizou, me fortaleceu e me ajudou muito a estar lá, que ajuda até hoje a me manter. E essas vivências têm muita contribuição para mim, pra comunidade, porque a gente traz pessoas da universidade pra cá pra gente fazer oficinas também, ensinar muitas coisas pra juventude daqui. A gente leva a comunidade pra universidade, a gente mostra nossa cultura também, mas não como exótica. Muitas pessoas podem achar isso, mas a gente está lá se fortalecendo, se autoafirmando. A cada manifestação a gente se autoafirma, a gente fortalece cada vez mais nossa identidade. E muitos jovens aqui da comunidade já estão seguindo o mesmo caminho. A gente já tem muitos na Escola Família Agrícola também já tem muitos aqui no Ensino Médio. Eles vão chegar na universidade. Eu dou muita força pra essa juventude. Estou lá também na universidade lutando pra que a gente consiga ainda ter edital de educação do campo, que o curso não se acabe. Pra que muitos tenham acesso ao ensino superior. Podem fazer Medicina, podem fazer Veterinária, podem fazer Design, podem fazer Ciências Sociais, Arqueologia, Museologia, o que quiserem, porque gente tem direito a isso. Então, quem quiser fazer Química, Educação do Campo, a gente pode ter acesso a tudo isso. Eu incentivo muito a juventude de nossa comunidade. Cada um com a sua especificidade vai chegar na universidade, vai trazer muito benefício pra comunidade também e pra própria pessoa.
HC: A educação brasileira passa por um momento delicado que deve se agravar com os cortes orçamentários direcionados às universidades e institutos federais, anunciado pelo Ministério da Educação (MEC). Nessa semana a Universidade Federal do Piauí (UFPI) emitiu uma nota confirmando o bloqueio global de 30% em seu orçamento, destacando que “a decisão impacta diretamente no funcionamento de toda a Universidade”. Esse é o caminho? Consegue enxergar um futuro melhor diante dessa realidade?
Dinayana: Claro que não! Tudo indica que a gente só vai piorar. Enquanto as mobilizações e movimentos sociais não tiverem uma luta unificada, a gente não consiga se organizar... Mesmo que a gente esteja em cada mobilização, se organizando, a gente está preparando pra tudo isso. Então, eu vejo que pode piorar? Pode, porque não é garantia de nada. Esse presidente não respeita nada. E a gente não tem garantia de nada. Eu acredito que possa piorar. A gente já não tinha garantia de permanência do curso e outras ações também. Já, depois desse corte... Já não tem garantia para quem é indígena, pra quem é LGBT, pra nenhuma das minorias, de estar na universidade.
Roteiro por Joaquim Cantanhêde
Edição por Luciano Melo
Introdução por Ohana Luize
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