A conjuntura política brasileira ferve e o motor da história no Brasil parece não ter tempo de esfriar. Enquanto trabalhadores de diversas categorias ocupam as ruas, desafiando a popularidade do presidente da República, Jair Bolsonaro (PSL), o homem que foi se tornando estandarte da direita e extrema direita do país, a esquerda se vê tendo que dividir o tempo entre as reflexões sobre seus erros, acertos e a disputa pela direção dos movimentos que envolvem a classe trabalhadora e as juventudes.
Mais precisamente, a partir do dia 1º de maio deste ano, têm tomado fôlego as tentativas dos movimentos sociais no campo progressista de efetivarem uma oposição ao governo federal que passará, necessariamente, pelas mobilizações de rua e paralisação de setores de produção e serviços em todo o Brasil. A estratégia coloca desafios e dificuldades analisadas sobre as mais diversas óticas pelas organizações. Para a militância de esquerda mais experiente, o momento exige uma mistura de ação permanente, retorno ao trabalho e diálogo com as bases, cautela e bastante primor nas análises de conjuntura.
Sobre estes e outros assuntos, conversamos com o professor do curso de História da Universidade Estadual do Piauí (Uespi), Gisvaldo Oliveira da Silva. Ele é Mestre em História do Brasil pela Universidade Federal do Piauí (UFPI) e atual docente efetivo no campus Josefina Demes, de Floriano-PI. É membro do Núcleo de Pesquisa e Estudo em História, Territorialidades e Movimentos Sociais. Integra a equipe docente do projeto de extensão: Escola Popular de Formação Política da Uespi desde 2017. Desenvolve pesquisas nas áreas de movimentos sociais, relações de trabalho, conflitos e direito a terra no Brasil.
Gisvaldo retornou à Universidade onde fez graduação após um intenso período de espera pela convocação de concursados para o quadro efetivo da Uespi. O impulso militante vem de longe. O currículo político começou a ser construído ainda na década de 1990 quando construiu as direções dos grêmios estudantis da Escola Municipal Eurípedes de Aguiar e do Centro Federal de Educação Tecnológica, atualmente Instituto Federal do Piauí (IFPI). “Também venho de uma tradição que acredita na luta que articule fé e política, coisa que aprendi quando militei na Pastoral da Juventude da Igreja Católica. E entendo que a luta dos estudantes não é separada dos trabalhadores”, conta. Desse período, ele conta sobre a participação no movimento “Fora Collor” e contra a reforma do ensino técnico e tecnológico do então governo de Fernando Henrique Cardoso.
O professor assumiu neste ano, junto à Associação dos Docentes da Uespi, a composição da regional do sindicato em Floriano. Já na casa, participou da última greve e reflete: “se diz que a greve foi uma das mais fortes no sentido de envolvimento da categoria, da unidade com os estudantes, extrapolando a reivindicação salarial e de condições de trabalho. A pauta fundamental foi e continua sendo o funcionamento da universidade, a partir da garantia de recursos para sua finalidade que é pesquisa, ensino e extensão com qualidade. Defendemos a existência de uma Uespi pública, gratuita e socialmente referenciada. Ainda precisamos avançar em questões como as progressões e promoções dos professores e já decidimos sobre a realização de uma campanha pública que intensifique as mobilizações para um novo concurso. Precisamos preencher cerca de 300 disciplinas, com uma carência de mais 500 professores, pelo menos. A luta não para”.
Atualmente Gisvaldo é militante do Partido Socialismo e Liberdade (PSol) dentro da corrente Resistência, criada por dissidentes do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU), que mantém a tradição do socialismo inspirado nas ideias de Leon Trotsky. Gisvaldo atuou no PSTU e foi da direção por seis anos. A saída se deu por “divergências metodológicas e políticas”. Na juventude, a primeira experiência partidária foi no Partido dos Trabalhadores (PT), quando ajudou a fundar a Secretaria de Juventude do partido no Piauí.
A conversa se deu com o professor na semana onde centrais sindicais e movimentos sociais preparam uma greve geral no Brasil. Clima favorável para ouvir de um militante experiente sobre o futuro para a esquerda brasileira.
Acusações de doutrinação, de desqualificação e mau uso dos espaços acadêmicos tomaram o espaço público no último período. Como é, para você, ser um professor e militante político em meio a um cenário que ataca as ideologias de esquerda?
Se trata de um discurso de cerceamento à liberdade de expressão, pedagógica e de cátedra do professor. Discursos usados para tentar desqualificar professores que tem lutado cotidianamente, junto com os estudantes, em defesa da universidade pública e gratuita. É um discurso retórico, pois o que existe na sociedade é uma disputa política de projetos. Disputa sobre que tipo de sociedade desejamos até para a universidade pública existir. No modelo capitalista é impossível que ela funcione socialmente referenciada. Temos que lutar permanentemente para assegurar direito de fala, de se comunicar, e tentar convencer a sociedade de que a universidade precisa cumprir esse papel e que esteja a serviço do conjunto da sociedade. Hoje ela tem dificuldade porque o governo, a partir das políticas que implementa, não dá estrutura para esse objetivo. Professores pesquisam com os próprios recursos, realizam projetos de extensão a partir de iniciativas individuais, sem nenhum auxílio da universidade. Então os professores fazem o melhor possível dentro das possibilidades, mas lutando para ter as condições necessárias. É desafiador, mas o que não é nessa sociedade que a gente vive?
E sobre o diálogo com os estudantes universitários. Você acha que está mais difícil falar certas coisas, especialmente tendo a sua visão política?
Está muito mais difícil, pois estamos vivenciando uma ofensiva dos sistema capitalista contra a classe trabalhadora e a juventude nas dimensões econômica, política e moral. Na economia se dá a partir das políticas de retirada de direitos, cortes de verbas nas instituições públicas; na política, se trata de restringir liberdades democráticas e de expressão; e a ofensiva moral não é elemento novo, mas se dá a partir das criminalizações das chamadas maiorias sociais como negros, lgbts e mulheres. E isso, principalmente no campo político, tem criado limites de diálogo entre professores e alunos. Precisamos enfrentar as adversidades e eu costumo dizer que fazer militância de esquerda fora condições normais de pressão e temperatura é um teste para nós como militantes. É o momento mais importante da nossa atuação e de testar nossa convicção ideológica.
Nesse momento as esquerdas estão em unidade para derrotar projetos específicos do governo Bolsonaro. Isso tem se mostrado nas mobilizações de rua. Você acha que demorou para essa unidade sair?
Eu acho que a esquerda demorou a fazer essa unidade, mas ela ainda não está consolidada. Começamos a dar passos significativos entre as organizações da esquerda e enfrentar as retiradas de direitos e o cerceamento das liberdades democráticas. Mas essa consolidação da unidade está em curso. Pela primeira vez, desde a eleição do Bolsonaro, os movimentos sociais que representam a classe trabalhadora conseguiram ser maioria nas ruas, mas não foi suficiente para por abaixo a retirada de direitos. Significa que avançamos, estamos reagindo com o avanço da unidade, mas o governo tem audiência de massas grande. Depois do dia 15 de maio e do dia 30, o governo não recuou da pauta da Previdência, da lógica dos cortes. A discussão no campo da esquerda deve ultrapassar a unidade e se colocar em torno da manutenção dos direitos históricos conquistados com décadas de luta. Outro ponto fundamental é repensar a esquerda, suas práticas, suas táticas para construir a sociedade que deseja. Precisamos aprender a ouvir e dialogar. Em geral, somos muito faladores, mas temos muita dificuldade em ouvir. Isso trava o diálogo e dificulta as chances de convencer corações e mentes para as ruas. Precisamos voltar a fazer trabalho de base, frequentar os locais de trabalho e estudo, organizar rodas de conversa, seminários, reunir trabalhadores no horário de intervalo e conversar sobre suas demandas. Trabalho de base não é só passar e entregar o jornalzinho na mesa para o trabalhador ler quando puder. Temos de manter um diálogo permanente com a classe. Além disso, é preciso um debate sobre a construção de um novo campo político que supere o capitalismo e rechace a conciliação de classes. A experiência com o PT mostrou que dentro desses sistemas não dá para libertar nossa classe. Essas experiências só sustentam até chegarem as crises do capitalismo, depois voltam governos típicos da burguesia que sugam a nossa classe, aumentam as dificuldades. É preciso aprender com os ensinamentos da história e eu acredito no socialismo como modelo de sociedade que vai emancipar nossa classe. Só precisamos rediscutir a forma de levar esse projeto para as pessoas. Além disso, existe uma nova classe trabalhadora que trabalha em condições precárias, jornadas exaustivas, sem nenhuma proteção social, com trabalho por demanda, intermitente. É quase uma volta ao século XVIII na Inglaterra. Precisamos entender como dialogar com essa parte da classe. E ainda há um erro de não considerar os desempregados como trabalhadores. Todos são e talvez o setor mais afetado por não encontrar trabalho para se manter. Tudo isso é desafiador para a esquerda e se ela não entender isso, corre o risco de se isolar. Usar novas metodologias sem abrir mão daquelas históricas, mas entender que o momento pede novas formas de se organizar.
“Lula Livre” é uma pauta capaz de unifica a esquerda?
Eu não diria que unifica a esquerda porque não unifica, mas é uma pauta fundamental a ser defendida pelos que defendem uma sociedade justa e solidária. A defesa “Lula Livre” não se confunde com defesa do PT, são distintos. Se colocar contra a prisão do Lula e a favor da sua liberdade é ser a favor das liberdades democráticas. O Lula não está preso por que fez conciliação de classe, mas por que ele carrega simbolicamente, no imaginário da classe trabalhadora, a trajetória da esquerda. A burguesia brasileira sabe disso. A prisão do Lula é uma tática consciente da direita e extrema direita brasileiras para desmoralizar o conjunto da esquerda socialista. Eles sabem que embora o PT não seja mais um instrumento que defende a transformação social, mas simbolicamente carrega essa trajetória. Não seria inadequado defender “Lula Livre”, do contrário, é uma bandeira que não está desligada das outras lutas. Há quem pense na esquerda que a defesa das liberdades democráticas seja secundária, e eu penso o contrário. É fundamental. Sem direito de falar não se comunica com a classe, defende ideias e não as leva a ninguém. Precisamos defender o direito de disputar o projeto de sociedade.
Você acha possível fazer algum parâmetro entre o comportamento da esquerda agora no governo Bolsonaro, com o período ali entre 2015 e 2016, e as chamadas Jornadas de Junho, em 2013?
São coisas distintas. Na minha opinião, junho não foi um momento totalmente reacionário, na maior parte ele foi progressista. As bandeiras de luta que apareceram eram extremamente positivas do ponto de vista da melhoria das condições de vida da nossa classe como transporte gratuito, mais recursos para educação e saúde, autonomia do Ministério Público. Eram bandeiras que se chocavam com o capital. No meio dessas bandeiras apareceu a do apartidarismo que, a meu ver, não se sobrepôs ao conjunto de bandeiras progressistas. Porém, naquele momento, o erro da esquerda foi não saber se localizar no interior do movimento e se colocar como alternativa. A direita e a extrema direita tiveram a percepção de que aquele movimento de junho era progressista e foi aí que os setores mais reacionários e a classe média foram para as ruas dizer “fora comunistas”, “volta ditadura”, “nenhum sentimento de terra para os povos indígenas” em 2015 e 2016, que veio a culminar com o golpe parlamentar que depôs a Dilma. Em junho houve uma reação da burguesia contra a possibilidade do movimento se virar contra a direita e a extrema direita do país. A esquerda não percebeu isso e perdeu o bonde da história, sem se localizar para um projeto de mudança radical do país. Não soubemos ler aquela conjuntura e permitimos que fizessem uma contrarreação e onde estamos nessa situação reacionária agora.
A imagem do atual governo não anda muito bem, nem dentro e nem fora do país. Apesar de algumas pessoas falarem disso, mas não há total segurança pelo “Fora Bolsonaro”, um possível governo Mourão, impeachment... O que você acha?
Nesse momento não há correlação de forças para impeachment ou algo que nos leve a isso. Se o Bolsonaro cair, Mourão não resolve o problema. A nossa luta é para derrotar a política dos dois que representam a mesma coisa. Mais que defender a substituição, devemos focar numa luta que nos leve a derrotar a política que eles representam. O foco das lutas das organizações da classe trabalhadora devem estar nisso, contra a política da direita e extrema direita. De nada vai adiantar trocar um pelo outro, só vai mudar o gerente. A conjuntura vai dizer se podemos avançar para o impeachment, mas não vejo esse cenário; fundamental é intensificar a luta para derrotar a política implementada.
Quais os rumos você acha que existem para a esquerda, considerando a greve geral e as últimas mobilizações?
Eu estou animado para a greve geral do dia 14. Acho que começamos um processo de unidade que deve se potencializar e pode dar a possibilidade de vencermos. Vejo o dia 14 de junho como mais um momento de fazer crescer a mobilização contra as políticas do governo Bolsonaro. O desafio de manter e intensificar as mobilizações, é também de crescer e asfixiar o governo. Talvez avançar para uma greve duradoura para além das greves que têm ocorrido num único dia. Tudo isso mobilizando categorias estratégicas como professores de universidades e ensino básico, bancários, petroleiros, construção civil. O foco hoje é a Reforma da Previdência por atingir diretamente toda a classe trabalhadora e as juventudes. Podemos perder seguridade social previdência, vai ficar difícil sobreviver, serão menos recursos para o ensino público, saúde. Outras lutas devem estar incorporadas, mas o centro é a reforma. Para isso se concretizar é necessário aumentar a pressão. Podemos observar que existe hoje alguma divisão nos setores de direita e extrema direita, mas eles não consideram que não devam aprovar a reforma. Só a mais ampla unidade do lado de cá é que vai nos permitir vencer. É importante dizer que na luta política existe também a possibilidade de ser derrotado. Não é o que queremos, mas existe. Penso eu que a possibilidade de vencer é mais, mas ainda não é suficiente. O grande debate do momento, na minha opinião, é que estamos chegando nesse limite entre continuar com calendários de greve ou avançar para uma greve geral mais duradoura. Tomara que a gente aprenda com os ensinamentos e história e sejamos capazes de potencializar a unidade na esquerda.
Texto e entrevista: Ohana Luize
Contribuições para entrevista: William Feitosa Junior – professor da rede municipal de ensino de Teresina e educador popular no Humanismo Caboclo
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