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Violências sobre os gêneros: uma superação necessária

Foto do escritor: Humanismo CabocloHumanismo Caboclo

A luta contra a violência é um tema central do movimento feminista no Brasil desde o início da década de 1980 (Fernando Frazão/Arquivo Agência Brasil)

Em 2017, foram 4473 homicídios dolosos de mulheres no Brasil. Destes, 946 foram feminicídios (homicídio motivado pela condição de gênero). Infelizmente, há muitas subnotificações (“em 2015, 11 estados não registraram dados de feminicídios; em 2017, três ainda não tinham casos contabilizados”) que não contribuem com estatística precisa dos feminicídios. Estes são dados do Fórum Nacional de Segurança Pública[i]. Mas, infelizmente, os números da violência contra as mulheres demonstram uma realidade bem mais cruel: “No Brasil, a taxa de feminicídios é de 4,8 para 100 mil mulheres – a quinta maior no mundo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). Em 2015, o Mapa da Violência sobre homicídios entre o público feminino revelou que, de 2003 a 2013, o número de assassinatos de mulheres negras cresceu 54%, passando de 1.864 para 2.875”[ii]. Além de retratar um mundo extremamente violento, a violência contra as mulheres revela outras desigualdades e mecanismos de exclusão como a questão étnica.


“Quase dez mil mulheres foram vítimas de feminicídio ou tentativas de homicídio por motivos de gênero nos últimos 9 anos, segundo levantamento da Central de Atendimento à Mulher, o Ligue 180. Desde 2009, a central registrou denúncias de morte de pelo menos 3,1 mil mulheres e outras 6,4 mil foram alvo de tentativa de assassinato”[iii]. Estes dados de 2009 a 2018 revelam o quanto importante são as políticas públicas e a lei do Feminicídio (Lei 13.104/2015): no ano de 2015, ano de promulgação da lei que tipifica o feminicídio, houve um salto de 69 denúncias – ano de 2014 – para 956.


Mas, certamente, esta problemática não será superada somente pela imposição de novas leis e da realização de políticas públicas diversas. Não se nega a sua importância e urgência. Porém, defendemos que sua superação depende da sociedade como um todo – Estado e sociedade civil. A violência contra as mulheres possui raízes profundas na cultura e na sociedade brasileira. Este artigo procura discutir algumas características desse padrão estrutural na cultura brasileira: o machismo como sistema cultural calcado na opressão social. Por meio da compreensão de sua lógica, pode-se pensar em alguns modos de sua transformação.


Em tempos onde requentam certas dúvidas sobre o valor das Ciências Sociais e Humanas, importante partilhar algumas reflexões de pesquisadores brasileiros que discutem a construção dos gêneros e como ela é marcada por uma tradição de violência e desrespeito aos gêneros oprimidos (não somente as mulheres). Pelo conhecimento, cremos que é possível sensibilizar os atores sociais e individuais para reverem suas posições, ideias e práticas a fim de construir relações de respeito e paz entre os gêneros.

Para nossas reflexões, tomamos como base o artigo de Mary Pimentel Drumont, Elementos para uma análise do machismo (1980), e um outro artigo da pesquisadora Berenice Bento, As tecnologias que fazem os gêneros (2010). Esses trinta anos que os separam demonstram que a sua problemática é complexa e exige contínuas revisões e ampliações. Ambos trazem provocações bastante elucidativas para o entendimento das inúmeras formas de desigualdade e violência contra as mulheres e as outras construções sociais de gênero.


Primeiramente, vamos considerar uma definição sobre machismo: “[...] é definido como um sistema de representações simbólicas, que mistifica as relações de exploração, de dominação, de sujeição entre o homem e a mulher” (DRUMONT, 1980, p. 81). As relações entre homem e mulher foram e são marcadas por exploração e dominação: tanto cultural como historicamente, o machismo se constitui como um sistema que ordena comportamentos de gênero de modo desigual e com os mais diversos privilégios para o segmento masculino. Por outro lado, o machismo é uma ideologia que busca legitimar e escamotear essas relações de violência e sujeição (SOUSA FILHO, 1995).


Como sistema de representações sociais, o machismo apresenta-se de diversos modos e maneiras no cotidiano social, sempre com a função de escamotear a desigualdade social entre homens e mulheres: desde a divisão desigual das responsabilidades domésticas e com os cuidados e educação dos filhos, passando por constrangimentos em transportes e demais espaços públicos, na desigualdade de salários no mercado de trabalho, em propagandas, músicas e demais objetos da cultura de massa bem como na desigual ocupação do espaço político institucional. Por fim, o machismo busca legitimar expressões de violência contra as mulheres pelas mais diversas justificativas: do amor à subserviência necessária das mulheres aos homens.


Por isso, Mary Drumont explica que “o machismo [sic] enquanto sistema ideológico, oferece modelos de identidade tanto para o elemento masculino como para o elemento feminino” (1980, p. 81). A identidade de gênero machista, como sistema de crenças, sentimentos e atitudes, ordena modelos de como ser masculino e feminino. A ideologia machista nos interpela como sujeitos sociais e nos constitui socialmente a partir de certas crenças, sentimentos e atitudes (ALTHUSSER, 1985). Não nascemos como homens e mulheres: apenas com o sexo biológico. A elaboração dos sujeitos como homens e mulheres depende de sua jornada social (desde a família, escola, meios de comunicação, igreja, redes sociais e outras vivências e experiências).


Berenice Bento (2010, p. 2) esclarece: “quando a criança nasce encontrará uma complexa rede de desejos e expectativas para seu futuro, levando-se em consideração para projetá-la o fato de ser um/a menino/menina, ou seja, ser um corpo que tem um/a pênis/vagina. Essas expectativas são estruturadas numa complexa rede de pressuposições sobre comportamentos, gostos e subjetividades que acabam por antecipar o efeito que se supunha causa”. São essas pressuposições sociais que moldam aquela forma vazia que é o sexo biológico. Como todo fato da natureza, o sexo também é reinventado culturalmente a partir de regras e conceitos socialmente elaborados: “antes de nascer, o corpo já está inscrito em um campo discursivo” (BENTO, 2010, p. 2).


A linguagem e seus sentidos possuem o poder de construir realidades. Ao interpelar meninas como aqueles seres sensíveis, nascidos para serem mães, que gostam da cor rosa e de bonecas, ou, ao estabelecer que meninos são fortes, destinados ao comando, que gostam da cor azul e de carros, essas taxionomias sociais classificam o que seria próprio de homem e o que espera ser natural de uma mulher. Os discursos que legitimam desigualdades e práticas de violência estão imbrincados nessa lógica perversa do simbolismo que tipifica a doçura, sensibilidade e fragilidade para as mulheres e a força, dureza e capacidade de mando para os homens.


Cabe aos atores sociais e individuais a desconstrução desses sistemas discursivos. Isso não é tarefa exclusiva dos movimentos sociais ou de organizações comprometidas com a defesa de direitos humanos. Essa é uma tarefa de toda a sociedade: desconstruir estereótipos que ferem a integridade humana (seja de mulheres, seja da população trans). Se não assumirmos (seja como indivíduos, seja como coletivos) esse compromisso ético e humanista com o respeito às diferenças de gêneros, jamais teremos uma sociedade livre e democrática. Somente podemos imaginar uma sociedade tolerante e humanamente complexa ao respeitar e aprender com as diferenças.


Por mais que historicamente tenhamos observado a produção de outras narrativas sobre masculino e feminino (o feminismo e os discursos sobre direitos humanos são algumas delas[iv]), há uma “estrutura ideológica de representação-dominação entre os sexos” que leva a uma “determinação social das ações dos sujeitos” (DRUMONT, 1980, p. 84). Não que haja uma reprodução mecânica de papeis sociais (comportamentos humanos previamente dados a partir de uma idealização social imposta). Certamente que os sujeitos são artífices de críticas, rebeldias e proposição de outros modos de ser. No entanto, há estruturas institucionais – ordenamentos sociais sistemáticos e calcados em fortes sistemas culturais, históricos e de poder – que se amparam em macroestruturas econômicas, culturais e políticas que garantem uma longevidade trans-histórica à dominação machista entre os sexos.


Como explica Berenice Bento: “o sexo anatômico não é aquilo que alguém tem ou uma descrição estática, mas o qualificador para o corpo adentrar à categoria de humano. Os atos que fazem os corpos sexuais também são experiências compartilhadas pelas significações culturais. Não existe corpo livre de investimentos discursivos, in natura. A primeira intervenção que construiu o corpo-sexuado e amarrou o destino desse corpo à genitália, não é a única. As cirurgias simbólicas subsequentes terão como objetivo controlar e produzir a ‘sexualidade normal’ em corpos-sexuados generificados dicotomicamente. Estas cirurgias ficarão a cargo das instituições” (2010, p. 3). As instituições sociais garantem a reprodução de discursos (ideias, conceitos, valores, dogmas, orientações etc.) que domesticam a nossa construção como seres masculinos e femininos. Essa domesticação está, hegemonicamente, controlada pela lógica do machismo que impõe uma vivência hierarquizada dos gêneros. Para romper com essa lógica perversa de subjugação e violência contra as mulheres é preciso repensar nossos sistemas discursivos. Discutir o privado e a intimidade é condição para vivermos relações de respeito e fraternidade entre os gêneros (contrário ao pensamento comum que defende que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”).


Aquele processo de domesticação torna-se ainda mais forte pelo mecanismo de naturalização da realidade. O que é explicado pelos discursos toma o caráter de verdade absoluta, logo, inquestionável. O que é “natural” é justamente aquilo sobre o qual não se deposita nenhuma dúvida. Assim, a explicação jamais é questionada: sobre ela não reside nenhuma estranheza. Pelo contrário, pressupõe-se que todos saibam como se fosse uma verdade que já nascemos conhecendo-a.


Essa “imunidade” aos questionamentos ou dúvidas é garantida pela força das estruturas institucionais. Estas reproduzem ideias pela força das tradições e dos mecanismos de vigilância e opressão humana: desde os contos de fada (CHAUÍ, 1991) aos organismos disciplinadores como escolas, meios de comunicação, igrejas, determinados centros de saber (FOUCAULT, 1990).


E qual seu resultado? Segundo Bento (2010, p. 4), o heteroterrorismo: “Há um heteroterrorismo a cada enunciado que incentiva ou inibe comportamentos, a cada insulto ou piada homofóbica. Se um menino gosta de brincar de boneca, os heteroterroristas afirmarão: ‘Pare com isso! Isso não é coisa de menino!’ A cada reiteração que um/a pai/mãe ou professor/a, a cada ‘menino não chora!’, ‘comporta-se como menina!’, ‘isso é coisa de bicha!’, a subjetividade daquele que é o objeto dessas reiterações é minada”. O sujeito é levado por meio das imposições discursivas a comportar-se segundo a lógica binária dos gêneros: ou homem, ou mulher. Qualquer outra possibilidade é minada. No campo discursivo, quando referendadas as outras expressões de gênero, estas são taxadas como aberrações, doenças ou transgressões ao natural[v].


Se não superarmos os estigmas naturalizados da cultura, não libertaremos os gêneros oprimidos de sua condição de sujeição e violência. Logo, é preciso quebrar essa redoma dura do “já explicado” ou “lógico”. As explicações e lógicas são criadas pelos seres no desenrolar da história. Necessitamos fomentar outras explicações que desconstruam as verdades que castram e violentam os gêneros. Escolas, meios de comunicação, igrejas, movimentos sociais, sujeitos coletivos e individuais devem explorar o poder criador das palavras e dos diálogos a fim de construirmos relações pautadas na fraternidade universal.


Perversamente, a naturalização silencia as outras possibilidades do humano que são uma construção cultural e histórica. Essa omissão proposital fortalece mecanismos de exclusão e opressão. As narrativas institucionais excluem processos de reconhecimento dos “outros”. Estes são uma ameaça à ordem instituída. Primeiramente, silencia-se diante dessa possibilidade. Caso não seja suficiente, condena-se à existência ilegítima: “o processo de naturalização das identidades e a patologização fazem parte desse processo de produção das margens, local habitado pelos seres abjetos, que ali devem permanecer” (BENTO, 2010, p. 5).


Como a cor flicts de Ziraldo, não há lugar para esses outros (feministas, transexuais, travestis etc.). Sobre esses “gêneros dissidentes” recai a invisibilidade como estratégia de opressão e controle: “A invisibilidade é um desses mecanismos e quando ‘o outro’, ‘o estranho’, ‘o abjeto’, aparece no discurso, é para ser eliminado. É um processo de dar vida, através do discurso, para imediatamente matá-lo” (BENTO, 2010, p. 4).

Assim, a heterossexualidade é a possibilidade única para a produção dos gêneros. E há inúmeras formas de “reiterar” essa narrativa de gênero: vestuários, gestos, atitudes, comportamentos, sensibilidades, profissões, palavras, posturas corporais, atividades físicas, tudo distribuído binariamente como aquilo que é próprio de homens e o que é característico de mulheres. Homens e mulheres são previamente moldados a partir de esquemas de gênero. Não somente as mulheres que fogem a esses padrões prévios como os próprios homens que experimentam outros modos de viver sua heterossexualidade são controlados e estigmatizados: “o estigma é um dos mecanismos de controle e dominação de que a sociedade dispõe sobre os indivíduos. O estigma justifica(sic) portanto, as principais formas de segregação que conhecemos como a segregação de classe, de grupos minoritários, de sexos etc., consequentemente a manipulação das relações sociais” (DRUMONT, 1980, p. 84).


Tornar público o campo das relações íntimas e interpessoais é fundamental para compreendermos o quão plural somos. A pluralidade é fermento da vida quando não é hierarquizada ou segregada. Os movimentos sociais, parte do conhecimento acadêmico e certos atores sociais estão trazendo à tona essa temática para que repensemos nossas relações sociais entre os gêneros. Desconstruir os estigmas e preconceitos é fundamental para uma sociedade que acolhe e valoriza sua diversidade. Ou nos revemos como seres que expressam gêneros plurais, ou condenaremos os gêneros oprimidos a uma série infinda de violências e exclusões.


Por Luciano de Melo Sousa, doutor em Ciências Sociais e professor da Uespi.


 

Referências bibliográficas:


ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de Estado (AIE). Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985.


BENTO, Berenice. As tecnologias que fazem os gêneros. In: VIII Congresso Iberoamericano de Ciência, Tecnologia e Gênero. Curitiba, 2010. 13 p. Disponível em: https://docplayer.com.br/22783765-As-tecnologias-que-fazem-os-generos.html. Acesso em: 9 maio 2019.


CHAUÍ, Marilena. Repressão sexual: essa nossa (des)conhecida. São Paulo: Brasiliense, 1991.


DRUMONT, Mary Pimentel. Elementos para uma análise do machismo. Perspectivas, São Paulo, p. 81-85, 1980. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/perspectivas/article/viewFile/1696/1377 . Acesso em: 2 maio 2019.


FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1990.


SOUSA FILHO, Alípio de. Medos, mitos e castigos: notas sobre a pena de morte. São Paulo: Cortez, 1995.

ZIRALDO. Flicts: a história de uma cor. São Paulo: Melhoramentos, 1998.

 

[i] VELASCO, Clara; CAESAR, Gabriela e REIS, Thiago. Cresce o n° de mulheres vítimas de homicídio no Brasil; dados de feminicídio são subnotificados. G1, 7 março 2018. Disponível em: https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/cresce-n-de-mulheres-vitimas-de-homicidio-no-brasil-dados-de-feminicidio-sao-subnotificados.ghtml .


[ii] ONU: Taxa de feminicídios no Brasil é quinta maior do mundo; diretrizes nacionais buscam solução. Nações Unidas, 12 abril 2016. Disponível em: https://nacoesunidas.org/onu-feminicidio-brasil-quinto-maior-mundo-diretrizes-nacionais-buscam-solucao/ .


[iii] BRITO, Débora. Denúncias de feminicídio e tentativas de assassinato chegam a 10 mil. Agência Brasil, 22 agos 2018. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2018-08/denuncias-de-feminicidio-e-tentativas-de-assassinato-chegam-10-mil .


[iv] Berenice Bento (2010, p. 3) expõe outras modalidades de construção dos gêneros: “As experiências de trânsitos entre os gêneros (transexualidades, travestilidades, cross dresses, drag queen, drag king), ou os gêneros dissidentes, demonstram que não somos predestinados a cumprir os desejos de nossas estruturas corpóreas. As instituições produtoras das normas de gênero não conseguem a unidade desejada. Há corpos que escapam ao processo de produção dos gêneros inteligíveis (mulher/feminino e homem/masculino) e ao fazê-lo se põem em risco porque desobedeceram às normas de gênero”.


[v] Brasil é o país que mais mata LGBTs no mundo: 1 a cada 19 horas. Disponível em: https://catracalivre.com.br/cidadania/brasil-mais-mata-lgbts-1-cada-19-horas/.

 

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