
As Licenciaturas em Educação do Campo se colocam como defesa da educação enquanto direito e um bem público social e que se assume como um importante avanço na oferta do Ensino Superior aos camponeses. Neste sentido, com o presente estudo, analisamos os desafios da formação dos educandos camponeses no contexto da Universidade, e os dados que subsidiam a discussão foram obtidos em pesquisa de campo desenvolvida em 2018 e 2019 no curso de Licenciatura em Educação do Campo, na Universidade Federal do Piauí (UFPI), localizada no Campus Universitário Ministro Petrônio Portella, s/n - Ininga, Teresina - PI. O curso atendia, na época da coleta de dados, 283 discentes oriundos de comunidades rurais e contava com 15 docentes.
No processo de coleta de dados, foi realizada observação, vivência nos espaços de formação dos discentes camponeses, aplicação do questionário e análise de evidências documentais. O embasamento bibliográfico foi construído através da compreensão acerca da Educação do Campo e seus marcos legais, a concepção das Licenciaturas em Educação do Campo e o perfil do docente em Educação do Campo em formação: Caldart (2012), Frigotto (2010), Libáneo (2013) , Saviani (1986), Molina (2017), dentre outros.
Antes de apresentar o estudo em questão se faz necessário destacar as conquistas e os marcos regulatórios da Educação do Campo, além de apontar a licenciatura em educação do campo em suas perspectivas e contextualização.
É importante analisar que a Educação do Campo apresenta-se reconhecendo o campo como espaço de vida, cultura e história, atendendo a um projeto de desenvolvimento agroecológico e de manutenção dos recursos naturais, onde é “voltado aos interesses e ao desenvolvimento sociocultural e econômico dos povos que habitam e trabalham no campo atendendo as suas diferenças históricas e culturais” (FERNANDES, CEROLI, CALDART, 2004, p. 27 apud ALENCAR, 2018, p. 209).
Na Resolução CNE/CEB nº 1, de abril de 2002, estão instituídas as Diretrizes Operacionais para a efetivação da Educação Básica nas Escolas do Campo além de outros dispositivos legais como encontrado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação nº 9.394/1996 que traz no artigo 28 as adaptações necessárias ao atendimento da população rural, ou seja, a Escola do Campo deve ser um local onde se promova uma aproximação entre o ensino e o trabalho, algo que lembra uma formação integral, e que se discutam os conhecimentos relacionados à vida e ao trabalho com a terra, vinculando a escola com o debate a cerca da agricultura familiar, tendo como plano de fundo, luta por seus direitos; assim também o reconhecimento dos saberes já produzidos na comunidade, dialogando com os saberes discentes e saberes docentes.
Como podemos perceber, a aprovação desses e de outros marcos legais se deram depois de muita luta dos movimentos sociais camponeses e solidários pela Educação Básica do Campo, concebido como dever do Estado e direito desses povos. E esse reconhecimento dos direitos é reforçado dentro dos processos de formação desses sujeitos, em espaços formais e em espaços não formais; na garantia de uma contínua luta pela escolarização da população rural, pois, em se tratando do acesso a direitos e até mesmo desenvolvimento de infraestrutura, o Campo, em muitos momentos, está em situação de desvantagem e de desigualdade em comparação à cidade.
As Licenciaturas em Educação do Campo (LEdoC) assumem não somente a luta de classe no campo brasileiro, como também se colocam como defesa da educação como direito e um bem público social. Esta afirmação entra em confronto com um conjunto de políticas que ameaçam a educação pública no país incluindo a Educação do Campo. Estas políticas que possuem como base a meritocracia, pautada nos parâmetros de avaliações externas, têm como um dos seus objetivos preparar o terreno para a privatização do ensino público, aumentando um controle em função das demandas do capitalismo, gerando trabalhadores mais instruídos e não emancipados.
A LEdoC, nesse sentido, foi pensada para garantir a formação, no âmbito da educação superior, respeitando suas especificidades contemplando conteúdos e dimensões de formação do homem, para os educadores que já atuam nas escolas do campo, como também para os(as) camponeses que nelas possam atuar. “Compreendendo a escola como espaço relevante de formação dos sujeitos capazes de disputar e construir um novo projeto de sociedade e de campo [...]”. (MOLINA, 2017, p. 08).
Levando em consideração o espaço de atuação e a relação entre território, trabalho, educação e cultura que pautam a Educação do Campo, os cursos de LEdoC têm como objetivo promover a formação de educadores por áreas do conhecimento para a docência multidisciplinar nas escolas do campo. Os componentes curriculares partem das quatro grandes áreas: Artes, Literatura, Linguagem, Ciências Humanas e Sociais, Ciências da Natureza e Matemática, Ciências Agrárias. O que justifica escolha para a docência multidisciplinar nas escolas do campo é a compreensão acerca do desafio de superar o conhecimento fragmentado trabalhado em sala de aula, bem como o enfrentamento do grave problema de insuficiência da oferta para os anos finais do Ensino Fundamental e Médio que acarreta em fechamento de escolas, sem falar na evasão escolar.
Outra particularidade na oferta da LEdoC é por se basear na Pedagogia da Alternância, onde existe na organização curricular o regime de alternância entre o tempo universidade e o tempo comunidade, afim de que se concretize a articulação entre a educação e a realidade especifica. Tal relação é intrínseca na promoção da educação para as populações do campo. O trabalho em regime de alternância é justificado porque facilita o acesso e a permanência no curso dos formandos em exercício nas escolas de suas localidades, resultando em seu ingresso na educação superior sem precisar abandonar o trabalho na escola básica.
Em sua vivência, ainda como educadores em formação, é possível desenvolver um aprendizado, enquanto pesquisadores, no intuito de serem capazes de ter uma percepção sensível da realidade. Nisso promove-se a importância de compreenderem vários outros espaços educativos em que a escola está inserida, tais como associações, cooperativas, equipes de assistência técnica, grupos de mulheres, sindicatos rurais, além de outros que abordem diferentes dimensões de organização e da produção do trabalho.
Mas o que se apresenta como características do curso de licenciatura em educação do campo? A investigação contou com a participação de 15 discentes do 6º bloco do curso já citado, oriundos de diferentes municípios do Estado do Piauí: a maioria de povoados da zona rural, com faixa etária que varia de 20 a 50 anos de idade. O que justifica a escolha desses sujeitos é a sua vivência consolidada no curso e por estarem no momento de preparação para a pesquisa de seus trabalhos de conclusão. É importante considerar que essa turma possui uma significativa participação nas mobilizações e lutas por melhores condições de acesso e permanência no curso. Sobre isso, percebe-se, com base em uma observação direta e intensiva, que o grupo participa de forma constante com a organização e atuação em assembleias próprias dos discentes e reuniões de avaliação no intuito da luta permanente por melhores condições de oferta da LEdoC.
Em um desses momentos, os discentes lutam por condições adequadas e seguras de alojamento, onde sua hospedagem se encontra no Centro de Treinamento do EMATER, localizada na saída para a cidade de Altos, BR 343: “numa zona rural que tem também índices de ocorrência de assaltos e estamos sem nenhum aparato de segurança, sem falar que não há nenhuma prestação de serviços, como: limpeza dos espaços da hospedagem e fornecimento de alimentação aos fins de semana” (relato de um dos dirigentes dos discentes da LEdoC). Nota-se também a distância entre a hospedagem e o local de aulas que afeta de igual modo a sua permanência e aprendizado.
Outra demanda recorrente seria “a instalação de uma bolsa emergencial, na qual foi proposta pela coordenação deste referido curso, ferindo os princípios da Educação do Campo, desarticulando a forma de organização dos estudantes e caracterizando-se como uma medida que não foi dialogada com os discentes” (relato do setor de comunicação dos discentes). A necessidade de uma bolsa para os(as) educandos(as) é pertinente pois os recursos do Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo – PROCAMPO – acabaram, até pelo fato do programa ter sido implantado com financiamento provisório, mediante o compromisso das universidades participantes passarem a assumir a oferta permanente com emprego de recursos de seus orçamentos.
Nesse sentido, os discentes seguem se mobilizando não deixando de lado suas obrigações e compromissos com seus estudos. Entretanto, a resistência leva a suportar certas condições precárias que põem em risco a qualidade do aprendizado e formação deles.
Os/as estudantes da LEdoC expressam condições precárias em sua hospedagem. Na observação e relatos, os sujeitos ainda apontam a falta de materiais de limpeza e de profissionais para o cuidado dos espaços de alojamento, fazendo com que os educandos possam utilizar seu tempo para descansar e cuidar de atividades acadêmicas, para cuidar da limpeza, comprometendo seu rendimento. Esse tratamento ainda é reflexo do tratamento histórico que as populações do campo recebem do Estado. Como afirma Arroyo (2012, p. 363) “os cursos e seus educandos são mantidos à margem do funcionamento das faculdades e universidades, reproduzindo o trato histórico marginalizado desses coletivos”. Sem o cuidado com as hospedagens dos educandos, a vivência dos diferentes tempos educativos e nos tempos universidade fica prejudicada, e a garantia dos elementos formativos necessários às práticas e posturas que se esperam dos discentes educadores em formação deixa de cumprir sua função.
Quando indagados se os conteúdos trabalhados em sala de aula dialogam com os saberes relacionados à sua vivência enquanto camponeses, os sujeitos entenderem que “são coerentes com os saberes [...]” (discente VI) e “[...] muitos conteúdos são voltados para a realidade em que vivemos” (discente II); ou que “apenas alguns conteúdos estão relacionados com o nosso cotidiano [...]” e “[...] existe um desconexo principalmente por parte dos professores da área de ciências” (discente III). Superar estas contradições sociais implica no tratamento das políticas educacionais que estejam de acordo com a singularidade e construção histórica do campo e seus sujeitos. Molina e Freitas (2011) destacam a importância da formação do(a) educador(a) relacionado com a realidade do camponês: “É fundamental formar educadores das próprias comunidades rurais, que não só as conheçam e valorizem, mas, principalmente, que sejam capazes de compreender os processos de reprodução social dos sujeitos do campo [...]”.
A preocupação em formar educadores das próprias comunidades se dá em decorrência do cultivo das identidades do sujeito camponês, que perpassa a compreensão da própria realidade, valorizando-a na participação social e no engajamento político (CALDART 2012). Para tanto, entendemos que os professores que atuam na LEdoC devem conhecer o processo histórico da Educação do Campo, bem como a diferença entre ela e a educação rural. O corpo docente, ou parte dele, não preparado, vê-se obrigado a replicar o modelo de ensino tradicional, sem diálogo e de forma verticalizada, como é abordado na educação urbana/rural, distante do que se concebe de Educação do Campo.
Perguntamos aos/as discentes se o curso contempla outros tempos, além do tempo em sala de aula, como auto-organização, trabalho, comunidade, lazer e cultura. O que justifica essa pergunta é o fato desses outros momentos serem tempos educativos, onde possam ser realizados fora do espaço da sala de aula, tendo uma intencionalidade pedagógica (CALDART, 2012. p. 51).
Nas suas respostas, muitos deixaram claro que existem momentos tanto organizados pelos sujeitos, como de acordo com o planejamento do curso. Sobre a organização dos discentes, notam-se práticas de organização coletiva que fortalecem vínculos e que materializam anseios. É importante considerar que tal mobilização contribui na formação organizativa dos discentes, além de refletir diretamente em trabalhos nas suas comunidades e no próprio trabalho docente futuro.
De uma perspectiva do que foi planejado no curso, o seu Plano Pedagógico elaborado em 2013 já prevê tempos destinados a atividades em sala de aula, como trabalhos nas comunidades, lembrando, como mencionado anteriormente, a abordagem da Pedagogia da Alternância.
Na fala dos sujeitos, a LedoC se propõe a apresentar uma educação que seja capaz de desenvolver o intelecto dos(as) educandos(as), perpassando o trabalho com a formação de valores, o desenvolvimento político, ético, estético e corpóreo de seus, bem como a sua autonomia política e intelectual, partindo da compreensão da educação como formação humana, recusando a matriz estreita e limitada da escola capitalista (MOLINA, 2017, p. 4).
Essa abordagem ajuda a manter o vínculo entre o sujeito/identidade com o seu território, possibilitando a permanência do discente na educação superior sem precisar abandonar o seu trabalho em uma escola do campo.
Entendendo a relevância que a LedoC tem frente aos desafios, tanto em sua dimensão política, quanto na proposta de uma nova organização escolar, opondo-se a uma educação rural e tradicional, perguntamos quais as suas expectativas enquanto educadores do campo após o término da licenciatura.
Boa parte das respostas demonstra uma expectativa em assumirem a responsabilidade de construção de práticas que darão materialidade de uma nova forma de escola como: promover a aprendizagem para com os alunos (sujeito XI), tentar mudar a realidade do ensino na escola do campo e com novos conhecimentos (sujeito XIV) e levar o conhecimento acadêmico para as comunidades, sempre dialogando com o saberes do campo e dos campesinos e sem perder essa identidade (sujeito V).
Os caminhos para transformação da escola são trilhados pelos anseios dos(as) trabalhadores(as), educandos(as), educadores(as) e comunidade como todo. Esse engajamento precisa estar atento aos percalços e impedimentos de ordem econômica e política de Estado. Lutar por uma educação que seja pública e que o Estado possa garantir seu acesso com todos os meios para a promoção de uma educação sintonizada com os(as) trabalhadores(as).
O sentimento de transformação da escola e do trabalho dialógico que os educandos querem propor em seus espaços de trabalho, refletem o fato de esses sujeitos terem ocupado o espaço universitário entendendo o seu papel histórico na luta dos camponeses. Já com os saberes construídos em seus espaços e a inquietação frente aos desafios enquanto camponeses, a formação universitária contribui para a formação de intelectuais orgânicos, autônomos, do coletivo da classe onde possam trabalhar na formação de outros educandos conscientes de sua realidade e do projeto de soberania popular.
Entendendo o aspecto da formação orgânica desses sujeitos, com a conjuntura em curso, o presidente da República, Jair Bolsonaro (PSL), eleito em 2018, afirmou intenções de tratar os movimentos camponeses,que lutam também pela Educação do Campo, como organizações terroristas. Com igual intento, é preciso reafirmar a posição contra a tutela armada, política e pedagógica do Estado. Pensar em uma nova escola implica em ações educativas de base, que formem o sujeito consciente e organizativo. A mobilização social, partindo dessa compreensão e proposta da LEdoC, demarca uma posição de resistência que também é educativa.
É a partir desse quadro que entendemos as concepções e práticas formativas que são desenvolvidas no curso de Licenciatura em Educação do Campo na Universidade Federal do Piauí. As políticas públicas específicas para a garantia do direito à educação dos camponeses estão ameaçadas e de igual modo a educação pública do país. Essas práticas analisadas têm apresentado que as ações formativas postas em curso pela LEdoC apresentam um avanço considerável em fazer a análise dessa conjuntura, tendo com plano de fundo a contextualização dos saberes e a articulação, segundo os sujeitos, da teoria e prática.
As dificuldades que se mostraram ao longo do processo ocorrem em outros espaços de formação universitária camponesa e é diante deste quadro que se deve avançar nas políticas e diretrizes para a Educação do Campo. É evidente que, para além dos esforços do trabalhador da educação, o Estado deve assegurar ações que possam garantir a permanência do(a) discente em meio a condições adequadas e justas, de modo que seja possível viabilizar sua formação docente contextualizada.
A pesquisa conseguiu analisar os desafios da formação dos educandos camponeses no contexto da Universidade Federal do Piauí; caracterizar o curso de Licenciatura em Educação do Campo na Universidade Federal do Piauí; conhecer o perfil dos educadores na perspectiva dos educandos camponeses e na aproximação com a realidade camponesa; e identificar as expectativas dos educandos quanto a formação para sua realidade. Nesse sentido, a pesquisa pode dar suporte para ações continuadas com os sujeitos no intuito de contribuir com a organização do movimento coletivo.
Por fim, um dos sujeitos fez uma consideração no momento da pesquisa onde apresenta sua leitura e reconhecimento à relevância da LEdoC para formação de um educador do campo, que entende esse movimento de transformação dos processos educativos e da própria escola: o Curso de Licenciatura em Educação do Campo tem que ser mais valorizado, já que ele busca dar oportunidade as pessoas do campo, para valorizarem esses conhecimentos para suas comunidades e sempre buscando que esses futuros professores não percam suas ligações e identidades com o campo.
Por William Feitosa Da Silva Junior, pedagogo e professor.
Referências
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Educação Nacional. Publicada no DOU de 23 de dezembro de 1996. <acessado em outubro de 2018>.
______. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO (MEC). CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO (CNE). Resolução CNE/CEB nº 1, de 3 de abril de 2002: Institui diretrizes operacionais para a educação básica nas escolas do campo. Diário Oficial da União. ˂acessado em: 17 out. 2018.
CALDART, Roseli Salete et al. Dicionário da Educação do Campo. Rio de Janeiro, São Paulo: Expressão Popular, 2012. p. 209, 240, 265, 475.
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