
O movimento de construção da concepção de escola do campo está no mesmo movimento de construção de um projeto de campo e de sociedade pelas forças sociais da classe trabalhadora, de mobilização e organização contra-hegemônica. “A escola do campo se mostra em uma relação de antagonismo às concepções de escola hegemônicas e ao projeto de educação proposto para a classe trabalhadora pelo sistema do capital” (MOLINA, 2012).
As escolas do campo são definidas pelo seu vínculo com questões inerentes a sua realidade, no alicerce da temporalidade e saberes dos próprios educandos(as), na memória coletiva, na rede de ciências e tecnologias disponíveis, na sociedade e nos movimentos sociais, na defesa de projetos que associem as soluções exigidas nas questões da qualidade social à vida coletiva do país (BRASIL, 2002).
Molina (2012) afirma que o entendimento de escola do campo parte da construção da Educação do Campo, nas experiências de formação humana desenvolvidas no contexto de luta dos movimentos sociais por terra e educação, ou seja, das contradições da luta social e das práticas de educação dos(as) trabalhadores(as) do e no campo. Essa concepção está de acordo com a perspectiva gramsciana da Escola Unitária, a qual desenvolve estratégias epistemológicas e pedagógicas que materializam o projeto de formação humana omnilateral, tendo como base a integração entre trabalho, ciência e cultura. Por isso esta concepção de escola do campo se mostra numa relação antagônica, contrária ao projeto hegemônico de educação da e para a classe trabalhadora.
Para que nas escolas do campo seja possível o alcance desse objetivo, dependerá da forma como elas estejam ligadas ao mundo do trabalho e às organizações políticas e culturais dos trabalhadores camponeses. Significa dizer que a escolarização em todos os níveis deve promover o conhecimento sobre a dinâmica da sociedade dividida em classes, os meios de subordinação e dominação que compõe esta dinâmica e sobre o modo de integração da produção agrícola no projeto de sociedade elaborado pela classe trabalhadora. Em outras palavras: “[…] se propõe a construir uma prática educativa que efetivamente fortaleça os camponeses para as lutas principais no bojo da constituição histórica dos movimentos de resistência à expansão capitalista em seus territórios” (MOLINA, 2012, p. 330).
Essa concepção foi reconhecida nos marcos legais depois de muitos anos de experiências e prática concretas de Educação do Campo. Um dos marcos a dar reconhecimento e a utilizar a expressão escola do campo, diferençando da expressão e concepção de escola rural, foi das “Diretrizes Operacionais para a Educação da Básica das Escolas do Campo”, de abril de 2002 (Brasil, 2002), expedidas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE). Isso se configura como uma das mais importantes vitórias conquistadas na luta dos movimentos sociais e se incorpora na agenda político-jurídica das lutas camponesas.
É importante destacarmos a definição que é apresentada por estas diretrizes sobre a concepção e identidade das escolas do campo que encontramos no parágrafo único do 2º artigo: “[…] a identidade das escolas do campo é definida pela sua vinculação às questões inerentes à sua realidade, ancorando-se na temporalidade e saberes próprios dos estudantes, na memória coletiva que sinaliza futuros, na rede de ciência e tecnologia disponível na sociedade e nos movimentos sociais em defesa de projetos que associem as soluções exigidas por essas questões à qualidade social da vida coletiva no País” (BRASIL, 2002).
Existe outro dispositivo legal que legitima a participação efetiva dos movimentos sociais nos processos de organização e realização das atividades escolares. Esse componente tem uma importância político-pedagógica destacada, pois, por meio dele, tem se verificado a transformação das escolas rurais em escolas do campo, posto que os movimentos sociais são capazes de inscrever nos processos educacionais as tensões e conflitos sociais negligenciados na história e no currículo oficializado, além de “ensinarem” a tecnologia educativa com potência de promover organização para conquista de direitos.
Outro componente destacado é a valorização do trabalho como principio educativo. O artigo 4º das “Diretrizes Operacionais” afirma que: “a construção dos projetos político-pedagógicos das escolas do campo se constituirá num espaço público de investigação e articulação de experiências e estudos direcionados para o mundo do trabalho” (BRASIL, 2002). Os sujeitos individuais e coletivos comprometidos com a Educação do Campo vêm procurando contemplar nesses projetos o desenvolvimento da escola partindo das concepções educativas do campesinato, organizada em torno dos princípios da Educação do Campo, como forma de assegurar no processo de organização da escola e no que se ensina e aprende a valorização do campo como território e dos(as) camponeses(as) como sujeitos de direito. A valorização do docente compõe esse mesmo processo, não na condição de um ser idealizado, superior aos demais agentes da escola, mas como um profissional diferenciado, pelo papel estratégico que exerce na escola e nos processos educativos.
Também merece menção a definição no decreto nº 7.352/2010, que institui a Política Nacional de Educação do Campo, definindo o que são escolas do campo. No seu 1º artigo compreende por “escola do campo: aquela situada em área rural, conforme definida pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, ou aquela situada em área urbana, desde que atenda predominantemente a populações do campo”.
Ainda neste mesmo decreto, apresenta como função principal a obrigatoriedade do Estado brasileiro de instituir formas de ampliar e qualificar a oferta da educação básica e superior aos sujeitos do campo. Vale ressaltar que o próprio decreto estabelece os fins da política nacional: “destina-se a ampliar a qualificação da oferta Educação Básica e Superior às populações do campo” (BRASIL, 2010).
Nisso, a Educação do Campo busca cultivar um conjunto de princípios que orientam as práticas educativas que promovem o desenvolvimento do território rural, onde reconhecendo que o espaço da vida dos sujeitos camponeses, na perspectiva de desenvolver a ligação da formação escolar, como parte da formação de uma identidade com a vida em comunidade.
Uma das dimensões significativas nas escolas do campo é ter o trabalho como valor central, tanto no sentido ontológico, quanto no sentido produtivo, “como atividade pela qual o ser humano cria, dá sentido e sustenta a vida; ensina crianças e jovens o sentido de transformar a natureza para satisfazer as necessidades humanas, compreendendo que nos produzimos a partir do próprio […]” (MOLINA, 2012). Uma escola onde possa ressignificar os valores da subordinação do trabalho ao capital: na compreensão que o trabalhador deve viver de seu próprio trabalho e não viver do trabalho alheio.
No entanto, uma parte significativa das escolas que são localizadas no meio rural não está, de forma organizacional e pedagógica, de acordo com os marcos legais que referenciam a Educação do Campo e a concepção de Escolas do Campo. Com isso fica claro que assim como pode se tratar de uma gestão política educacional segregadora, trata-se também da ocupação de espaço com as relações capitalistas dominantes que, por sua vez, assegura a inferiorizarão da escola do campo, dando vazão à afirmação histórica de que “o produtor agrícola é um ignorante” e fazendo disso uma desculpa para uma subordinação aos valores urbanos que são apresentados como base de todo poder político e econômico.
Boa parte das escolas existentes no meio rural oferece uma educação na mesma dinâmica da que é ofertada nas cidades, onde as características dos camponeses ou dos filhos destes não existem nestes espaços. Sem falar que há muitas escolas rurais multisseriadas onde tem se apresentado como alternativa para a permanência dos(as) estudantes filhos(as) de camponeses a fim de terem acesso aos conhecimentos elementares de leitura, escrita e operações matemáticas simples. Mas as taxas de analfabetismo e os baixos índices de escolarização continuam alarmantes nestes espaços.
Para além da precarização existente nestas escolas, no que tange a infraestrutura e qualificação docente, é relevante considerarmos que o resultado negativo deste tipo de educação oferecida ao(a) filho(a) do camponês se dá também pelo distanciamento de valores culturais próprios. É evidente que nestas escolas, cuja modalidade é a da escola urbana, seus estudo nada têm a ver com o cotidiano do trabalho camponês, visto que os(as) estudantes filhos(as) de camponeses geralmente ajudam a família na roça e no momento escolar poderiam encontrar uma aproximação entre trabalho e o estudo.
Apesar das conquistas legalizadas, muitos desafios se colocam à frente para consolidação das escolas do campo como espaços formais de construção de conhecimentos que surgem no relacionamento do estudo com trabalho produtivo pelos(as) estudantes oriundos do meio rural. Devemos compreender as especificidades das escolas do campo a fim de possibilitar a elevação do nível socio-cultural e político de seus estudantes, o que pressupõem estarem regidas pelos princípios norteadores da Educação do Campo e sintonizadas com a luta pela Reforma Agrária e a construção de uma sociedade justa e igualitária.
Percebemos, por nossa experiência, que a escola do campo, os seus sujeitos e os docentes ainda são pouco estudados em trabalhos acadêmicos, fator que também reforça a condição de desigualdade dessa escola e os seus atores. É preciso uma postura crítica e ao mesmo tempo de insurgência às políticas educacionais que precarizam e inviabilizam a educação das escolas do campo.
Por William Feitosa Da Silva Junior, pedagogo e professor.
Referência
ANTUNES, Ricardo. Adeus ao Trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 2010. 14. ed. p. 103.
BRASIL. Lei nº 9394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da
Educação Nacional. Publicada no DOU de 23 de dezembro de 1996. <acessado em 06 de outubro de 2014>.
BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO (MEC). CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO (CNE). Resolução CNE/CEB nº 1, de 3 de abril de 2002: Institui diretrizes operacionais para a educação básica nas escolas do campo. Diário Oficial da União. ˂acessado em 21 de Março de 2014˃.
CALDART, Roseli Salete, PEREIRA, Isabel Brasil, ALENTEJANO, Paulo, FRIGOTTO, Gaudêncio. (organizadores). Dicionário da Educação do Campo. Rio de Janeiro, São Paulo: Expressão Popular, 2012. ed. p. 240 a 241, 257, 293 a 298, 324, 326 a 332, 347 e 385.
CAMPOS, Francisco Jadir de Sousa, Trabalho Docente e Saúde: Tensões da Educação Superior. Belém 2011 Dissertação (Trabalho de pós-graduação em Educação) – Instituto de Ciências da Educação, Universidade Federal do Pará.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Pratica Educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
MARX, Karl. O Capital. ed. resumida. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967.
MOLINA, Mônica Castagna, FREITAS, Helana Célia de Abreu. Avanços e Desafios na Construção da Educação do Campo. Brasilia, v. 24, n. 85, p. 17-31, abr. 2011.
NISHIMURA, Shin Pinto, JINKINGS, Nise. Precarização do Trabalho Docente na Escola do Campo In: AUED, Bernadete Wrublevski, VENDRAMINI, Célia Regina (organizadores). Temas e Problemas no Ensino em Escolas do Campo 1 ed. São Paulo: Outras Expressões, 2012,. p. 297
PADILHA, Valquíria. Qualidade de vida no trabalho num cenário de precarização: a panaceia delirante, in: Revista Trabalho, Educação e saúde. Rio de Janeiro, v. 7 n. 3, p. 549-563. 2010.
SINTEPE. No Piauí, mais de 300 escolas públicas são fechadas. Disponível em <http://www.sintepe.org.br> Acessado em: 20 de out. de 2014.
Comments