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Foto do escritorHumanismo Caboclo

Maria do Socorro: com quanta saudade se faz uma poesia?


Maria do Socorro, entre a costura e a poesia (Foto: Joaquim Cantanhêde)

Conheci Maria do Socorro Menezes, 78 anos, nos encontros da vida, possíveis graças ao boca a boca. Fui até sua casa, em Trizidela do Vale, em uma típica tarde de sol do interior maranhense, acompanhado da amiga Ana Néres, que tem ajudado na divulgação do que por muito tempo ficou retido nos cadernos. São muitos pela casa, misturam-se aos livros. Afinal, adentramos o lar de uma educadora, artesã, mas no que depender da saudade, é antes de tudo, poetisa.


Maria sente falta do Ceará, estado natal, basta ouvi-la por alguns instantes. Sua sina foi igual a de tantos cearenses que deixaram os lugares de origem em busca de uma nova vida no Maranhão. Não por acaso, seus escritos nos aproximam de uma realidade particular que desconhecemos, aquela que por muitas manhãs vivenciou no Sítio Calabaço, em Lavras da Mangabeira, lugar de nascimento e, por algum tempo, morada. Foi a paixão por ensinar que lhe reservou as doçuras e amarguras do êxodo, ainda mais difícil em tempos de estrada e transportes precarizados (isso por volta dos anos 1960). Havendo familiares no povoado Trindade, interior da cidade de Pedreiras (MA), aceitou a tarefa de ser professora. Ensinou toda uma geração.


Na última visita que fiz mostrou-me um caderno com desenhos, traços não tão complexos, o que não significa ausência de sentido: simbolismo diverso, pelo contrário. Maria escreve e desenha seu cotidiano, seja ele atual ou vivido em determinado instante da vida. Retrata animais, tradições, com espaço para as representações religiosas, natural para uma católica praticante, que interrompe a conversa, não importando o convidado, para ver a procissão passar na porta de casa. Silenciosamente se rende ao clamor das orações.


Numa dessas visitas lhe indaguei sobre a importância da poesia em sua vida. Sem titubeios ela respondeu: “É igual o sangue que corre na minha veia, porque se esse sangue faltar tira um pedaço da minha vida. Tira uma pouco da força que tenho para viver”.

Metáfora

"Na água seria uma tainha No ar uma andorinha No fogo uma centelha Na colmeia uma abelha E na Terra eu sou gente De um a outro hemisfério E agora fala sério Bem aqui no meu ouvido Diga se é proibido A quem quer ser diferente"

Maria do Socorro Menezes


Os esforços para fazerem ecoar os dizeres poéticos de Maria surtem efeito. O mais notável deles foi a publicação do livro “Retalhos de Maria” e a produção de um documentário com mesmo título (que pode ser visto abaixo) que para além das obras, traz relatos da autora sobre sua história de vida.


“Menina anciã, de ideias frescas e coloridas, num emaranhado de tempo e todas as procuras. Fala por todas as ‘Marias’ tímidas em cantar o amor em todas as suas faces e ao doar-se em palavras aos encantamento da vida”, descreve Ana Nerés, de igual modo poetisa.

Em novembro de 2017, Maria tomou posse na Academia Pedreirense de Letras (APL) em uma cerimônia que reuniu parentes, amigos e admiradores. Entre os presentes Samuel Barreto, poeta e companheiro de academia.

“A obra poética de Maria do Socorro Menezes chegou à Academia Pedreirense de Letras pela porta da frente e no melhor estilo, já que esta poeta tem qualidade brilhante no seu engenho criador do seu fazer poético. A APL recebeu Maria do Socorro com festa, sabendo que a mesma enaltece as letras com a força da sua poesia, que tem cheiro de terra e de gente na construção coletiva de cada bordado, pintura e costura da sua criação, como observadora dos acontecimentos humanos, das coisas e da natureza. É como diria Manoel de Barros, ‘valorizando a grandeza das pequenas coisas’, assim é Maria, feita de versos e de amor”, destaca Samuel Barreto.

“Inventei de costurar para as pessoas. Fui me adaptando, ficando mais prática, até que me aposentei”, relata Maria em referência à sua outra paixão. Não por acaso a palavra retalho apareça como título de uma de suas obras. Pedaços de tecido ganham forma, de gato, gente, palavras.

Maria do Socoro (Foto: Joaquim Cantanhêde)

“A imagem de minha avó lendo a bíblia, rezando o terço e me levando à igreja são memórias marcantes. Ela é de fato a definição de mulher destemida e guerreira. Dona de um personalidade autêntica, mas sem perder a doçura, minha avó é uma miscelânea de emoções. E são os seus versos que melhor representam essa efervescência de sentimentos. Vê–la sentada tecendo as palavras, inspira-me. Acredito que tenha vindo daí, ainda que de forma inconsciente, minha paixão pela Língua Portuguesa. Não herdei seu talento poético, entretanto, o seu amor ao magistério também corre em minhas veias”, enfatiza a professora Raymenna Furtado, neta de Maria do Socorro.

Sobre a obra de Maria, Ana Nerés enaltece sua natureza popular e atualidade. “Versos traçados ao gosto das formas dos ritmos populares ou alinhavados livremente ao sabor da inspiração de sua colcha de retalhos de vida. Vem alfabetizar nossas poesias pós-modernas em sua linguagem nativa sertaneja arrojada na inspiração e espontaneidade dos versos, mas que também sabe ser contemporânea”.

Fez uma vida no Maranhão. Filhos, netos e os bisnetos, Hadassa Furtado e Heitor Furtado. Para onde quer que ela vá a saudade dos lugares e pessoas será um rastro constante. Por enquanto Maria sonha percorrer o caminho de volta até Lavras. Seus inscritos já ecoam por lá graças às possibilidades comunicacionais via redes sociais. Espera pegar a estrada até a metade do ano. Enquanto isso não ocorre de fato, faz-se andarilha do imaginar, do poetizar e costurar. Por Joaquim Cantanhêde

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