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Sobre a atualidade perigosa de Paulo Freire

Foto do escritor: Humanismo CabocloHumanismo Caboclo

Paulo Reglus Neves Freire, ou simplesmente Paulo Freire. O que dizer sobre ele que já não tenha sido dito, publicado, elogiado e, nos dias difíceis que estamos atravessando, submetido à tentativas de desvalorização, negação, desvirtuamento? Em determinado setor social há um nítido esforço de “desconstruir Paulo Freire” mas, o que justificaria este propósito? Provavelmente por ele ser mais que a sua história contada, registrada e por traduzir um legado que ultrapassa as circunstância em que viveu e produziu sua obra, alcançando o movimento que dinamiza e reproduz a sociedade brasileira, lationoamericana e mundial em suas virtudes e mazelas.

Brasileiro, nordestino, expulso de seu país em 1964 no regime ditatorial civil-militar, após ter permanecido preso por 70 dias, tornou-se um andarilho pelo mundo, tendo estado na África, Ásia, Europa e países da América, realizando trabalho marcante no Chile, Bolívia, Guiné Bissau, Angola, São Tomé e Principe, Cabo Verde e Estados Unidos, o que fez seus algozes o considerem um “subversivo internacional”.

Em 1970, ao falar sobre essas andarilhagens Freire nos faz ver que o perigo atribuído a ele reside nos enfrentamentos assumidos ante à perversidade do sistema opressor e consciência ingênua da sociedade sobre a sua realidade: “O que me parece muito claro em toda a minha experiência, da qual saí sem ódio nem desespero, é que uma onda ameaçadora de irracionalismo caiu sobre nós: forma ou distorção patológica da consciência ingênua, extremamente perigosa, por causa da falta de amor da qual se nutre, por causa da mística que a anima.” (FREIRE, 1979, p. 10).

Paulo Freire nunca foi unanimidade e ao longo do tempo o sistema opressor lidou com sua periculosidade criando condições para sua invisibilidade em programas e instituições de ensino brasileiro; não logrou o êxito pretendido, pois apesar das investidas, há um conjunto de experiências em espaços não-escolares e escolares, inclusive de ensino superior, a exemplo dos eventos denominados Fórum de Estudos: Leituras de Paulo Freire que, em 2018, na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)/RS, já se encontra na 20ª edição, Cátedras em instituições como a Universidade Federal de Pernambuco - UFPE, Pontifícia Universidade de São Paulo - PUC/SP e Universidade Católica de Santos - UNISANTOS/SP; congressos, colóquios, jornadas, mostra de cinema, e outras atividades, além de ter sido proclamado em 2012, patrono da educação brasileira[i].

Sua importância além das fronteiras brasileiras também é evidente, o livro Pedagogia do Oprimido, cujo aniversário de 50 anos, em 2018, rendeu importantes festejos, é o terceiro mais citado em trabalhos acadêmicos na área de humanidade no mundo. Em países como Costa Rica, Colômbia, Africa do Sul, Áustria, Holanda, Portugal, Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos Canadá, Suécia e Finlândia há cátedras, centros e espaços dedicados ao estudo de Paulo Freire, a exemplo do centro Paulo Freire, na Finlândia que, além de dedicar-se ao estudo, faz tradução de sua obra[ii].

Apesar dos avanços científicos e tecnológicos, das mudanças políticas e econômicas, o pensamento e proposta político-pedagógica Freireana continuam necessários e atuais, assim como o chamamento à uma Educação como Prática de Liberdade que, segundo ele, “é um ato de conhecimento, uma aproximação critica da realidade” (FREIRE, 1979, p.15) que requer o “engajamento necessário na luta pela libertação” (FREIRE, 2005, p.34) e na realização da vocação ontológica de ser mais.

Observa-se que a partir de 2017 a estratégia de invisibilizar Paulo Freire dá lugar a outro movimento: o de “desconstruir Paulo Freire”, iniciando com a proposta de cassação do título de patrono da educação brasileira, passando pelo que denominam “escola sem partido”, pelos projetos de militarização do ensino e das escolas, pela Reforma do Ensino Médio, com a secundarização de componentes curriculares que promovem a construção do pensamento crítico, pelos cortes de verbas das universidades públicas, dentre outras medidas, que fragilizam o princípio de educação como formação para a cidadania; de acordo com Flávio Bayner[iii], a proposta é de uma “Revolução Pedagógica Pós-Freireana”. Nesse conjunto, a educação é convocada, autoritariamente, a integrar um projeto de desumanização. Diante disso, pensar e agir como Paulo Freire parece retomar o perigo dos denominados anos de chumbo.

Esses fenômenos integram o contexto da ascensão de (des)governos no Brasil, na América Latina e no mundo, enaltecedores da injustiça social, tributária, orçamentária, previdenciária, da financeirização da economia, do ódio aos empobrecidos e de criminalizarão da classe trabalhadora, manifestados em diferentes formas de violência e ataque às liberdades e lutas democráticas dos setores populares posicionados contra a cultura opressora e autoritária que se instalou, via processos colonizadores, na conformação da geopolítica mundial, em que, segundo autores como Mignolo (2003), Fanon (1965), Quijano (2005), Maldonado Torres (2007), Dussel (2000), o “descobrimento" da América foi decisivo na formação de um sistema-mundial necessário à expansão da modernidade e do capitalismo, cujo centro de poder foi sediado primeiramente na Europa e posteriormente também dos Estados Unidos, por meio da escravidão, servidão, despossessão e exploração de riquezas naturais, tendo que, para isso, instalar uma ideologia da inferiorização, tanto com base na racialização das relações como na desvalorização e controle do trabalho e dos modos de vida.

Com excessão de Fanon, as demais leituras não constituíram o universo da análise Freireana, daí ser considerado um dos precursores do pensamento decolonial, para não restar duvida, na obra Educação e Mudança, de 1979, há uma análise relacionada ao que os autores acima denomina de colonialismo, fenômeno que ultrapassa o aprisionamento dos corpos e alcança o aprisionamento das mentes e das decisões políticas: “Os dirigentes solucionam problemas com fórmulas que deram resultado no estrangeiro […] acredita-se que ser grande é imitar os valores de outras nações […] vive-se Russia ou Estados Unidos, mas não se vive o Chile, Peru, Guatemala, Argentina. […] diante de um estrangeiro tratará de esconder populações marginais e mostrará bairros residenciais, porque pensa que as cidades mais cultas são as que têm edifícios mais altos.” (FREIRE, 1983, p. 35-36)

Na reedição atual da conjuntura brasileira dos anos 1970 o Presidente da República, Jair Bolsonaro, em visita oficial à Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, negligencia o peso das relações imperialistas históricas na definição da atual crise econômica brasileira com 12,2 milhões de pessoas desempregadas no primeiro trimestre de 2019 e uma dívida pública podendo alcançar 4,3 trilhões no mesmo ano, segundo provisão da Secretaria do Tesouro Nacional[iv], além de sinalizar com apoio à intervenção militar na Venezuela e permitir a utilização da base de Alcântara (MA), comprometendo negativamente, ainda mais, a nossa combalida soberania[v].

A superação sócio-política desse processo de aprisionamento requer, de acordo com Freire, uma prática pedagógica transformadora que não se realizará sem conscientização, compreendia não como prática instrumental manipuladora da desumanização reinante, mas como parte de um processo de se saber inacabado, passando pelo “desvelamento da realidade”, pelo engajamento político e epistemológico, pois, segundo ele, agir não basta, conhecer não basta, é necessário conhecer para transformar, para humanizar-se, o que requer reorganizar as estruturas de pensar, e de conhecer as relações e engrenagens que historicamente deram suporte à subalternização, à alienação.

Ressalta que nas estruturas anti-mudança os “mitos são elementos básicos da ação manipuladora dos indivíduos”, o que se torna fácil quando a sociedade se encontra imersa em estágios de consciência intransitiva, que impede às pessoas de apreenderem seus problemas, ocasionando uma “incapacidade de captação do grande número de questões que lhes são suscitadas socialmente. (FREIRE, 1983, p. 54)

Em tempo de movimento frenético das informações, de naturalização das fake news e abreviação de mensagens, inclusive presidenciais, em 280 caracteres, fortes apelos ao individualismo e à solução dos problemas no plano individual, parece se tornar cada vez mais difícil apreender o ser social em sua universalidade, assim, a corrupção, a violência, a alta dos preços, o feminicídio, a homofonia o trabalho infantil e análogo ao trabalho escravo, o rebaixamento dos salários, os cortes de orçamento nos gastos sociais se apresentam socialmente como fenômenos em si, isolados das relações capitalistas e autoritárias em que se constituem, e isto, contraditoriamente, acontece no momento em que os índices de acesso à escola se ampliaram consideravelmente. Este quadro Paulo Freire denomina de consciência intransitiva ingênua, segundo ele, caracterizada por uma quase completa negação de acessos, marcada pela entrega irracional e pela compressão mágica, mítica das coisas, podendo tanto pode evoluir para uma consciência transitiva crítica, como para uma consciência fanatizada, hospedeira do medo da liberdade. (FREIRE, 1983; 2002)

No convívio com o medo da liberdade estão as “prescrições”, viabilizando uma vida à sombra dos opressores, bem como “o seguimento de suas pautas” (FREIRE, 2005, p. 43) e esta inserção da lógica opressora na consciência intransitiva ingênua não se realiza na inércia, mas no movimento, este que, de acordo com Freire, tem em seu dinamismo a mudança e a estabilidade, sendo que para o poder opressor interessa o tempo de duração da mudança que ele empreende em cada momento, gerando, como resultado, determinada forma social. Por isso faz sentido que, acompanhando medidas como a reforma trabalhista e a proposta de reforma previdenciária, tidas como fundamentais a um novo ajuste fiscal no Brasil, que liberte o estado do “peso do setor social”, existam mudança em curso, tão fundamentais e perigosas à educação, a exemplo da reforma do ensino médio, da instituição da base nacional comum curricular, do “escola sem partido” e da militarização, pois tais medidas carregam consigo grande potência para alteração do padrão cultural existente, especialmente junto aos setores populares, os maiores guardiões dos valores originários próprios e também responsáveis pelos processos de desestabilizações, sem os quais não haverá base para a transformação social necessária.

Vale lembrar que mudança e estabilidade dependem da ação de pessoas sobre a realidade e que assegurar estabilidade na mudança transformadora requer uma prática pedagógica de transformação, que longe de ser mera abstração, utiliza-se de métodos e técnicas, que não implicam “propriamente em explicar às massas, mas em dialogar com elas sobre a sua ação” (FREIRE, 2005, p. 45), ajudar às pessoas a descobrirem a sua vocação ontológica e ao mesmo tempo desse descobrimento, identificar e compreender os atos proibitivos de sua realização plena; por isso não se dá em nível puramente intelectual e tampouco no ativismo, exige contato direto com a materialidade que condiciona os pensamentos, ou seja, contato direto com as pessoas oprimidas, pela escuta, pela ação conjunta, exige estar com, lutar com.

Invariavelmente, avançar nessa direção não implicará um processo tranquilo, pois “o ato de rebelião dos oprimidos, que sempre é tão ou quase tão violento quanto a violência que os cria, este ato dos oprimidos, sim, pode inaugurar o amor”, isto porque “somente os oprimidos, libertando-se, podem libertar os opressores.”, pois implica, estruturalmente, o desaparecimento destes, enquanto classe opressora e nesse processo de superação dialética deve ocorrer também a auto-superação, posto que enquanto dado estrutural, no processo de opressão os oprimidos são tornados hospedeiros dos opressores. (FREIRE, 2005, p. 48-49)

Deste modo, “Não se pode pensar em objetividade sem subjetividade”, que não é o mesmo que subjetivismo e psicologismo, mas a consideração que as pessoas são com os seus mundos, enquanto lugares de existências, de dores, de intimidades, de talentos e esses mundos precisam ser habitados solidariamente, lidos, compreendidos, respeitados e tidos como ponto de partida para lutas contra a superação de preconceitos, discriminações, opressões e afirmação de modos de vida alternativos. Esse processo é promotor de intersubjetividades, capazes de permitir a superação da visão de mundo como “não eu”, (FREIRE, 2005, p.41; 44), pois assim como não há mundo sem pessoas, não há pessoas sem mundo e é nessa relação de pertencimento que se tornam possíveis os trânsitos entre pessoas e suas realidades.

Mas, afinal, como enfrentar as tentativas de “desconstruir Paulo Freire”? Há um conjunto de ações em curso, todas elas já cumprindo o papel importante de contribuir para (re)inscrevê-lo no debate político e educacional brasileiro e latinoamericano, o que não pode ser feito idealisticamente, ou como profissão de fé, sob pena de um afastamento ainda maior de seu legado. Paulo Freire deve ser (re)contextualizado pedagogicamente, ou seja, compreendido a partir do seu tempo e tomado em seu exemplo, compromisso e trabalho ético-político para a construção da educação brasileira, pública, laica, gratuita, de boa qualidade e libertadora, cujas marcas estão em pequenos e grandes gestos, como colocar papel higiênico nos banheiros, quando secretário de educação da prefeitura de São Paulo ou na realização da Campanha de “Pé no chão Também se Aprende a Ler” que, em 1961, em Angicos (RN), com a participação de estudantes extensionistas organizados no Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE), lançou as bases para a elaboração de uma Campanha Nacional de Alfabetização, ato interrompido pela ditadura. Porém nem a ditadura nem as tentativas do sistema opressor foram capazes de eliminar o perigo de ler e viver as ideias de Paulo Freire.



Por Lucineide Barros Medeiros

Professora da Universidade Estadual do Piauí, Educadora Popular, Doutora em Educação

 

Referências


DUSSEL, Enrique. Europa, modernidad y eurocentrismo, in: Lander, E. (ed.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas latinoamericanas, CLACSO, Buenos Aires, 2000.

FANON, Franz. Racismo y cultura. In: Por la revolución africana, Fondo de Cultura Económica, p.38-52, México, 1965.

FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação, uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Cortez & Moraes, 1979.

FREIRE, Paulo. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

FREIRE, Paulo Reglus Neves. Educação e atualidade brasileira. São Paulo: Cortez; Instituto Paulo Freire, 2002.

MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. In: CASTRO-GÓMEZ, S. e GROSFOGUEL, R. (eds.), El giro decolonial. Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Ed. Siglo del Hombre Editores, Bogotá, 2007.

MIGNOLO, Walter. D. Histórias Locais / Projetos Globais: Colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar, UFMG, Belo Horizonte, 2003.

QUIJANO, Anibal. (2005), Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (ed.).A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, Buenos Aires: Clacso, 2005.


 

[i] Lei nº 12.612, de 13 de abril de 2012.





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