
Pelos vidros do carro percebia-se que aquela era uma sexta-feira como todas as outras. No centro da cidade imperava um movimento típico de uma área essencialmente comercial. Minutos depois da partida chegamos ao nosso destino, Catedral Metropolitana de Teresina. A normalidade daquele dia 2 de agosto ficou do lado de fora.
A igreja que leva o nome de Nossa Senhoras das Dores achava-se lotada. Sobre o altar certa figura chamava atenção. Uma estola (faixa) verde repousava em seus ombros e sobre a cabeça portava um chapéu de cangaceiro. Não é todo dia que se vê um padre assim e tão pouco uma igreja lotada de sanfoneiros de todas as idades, vindos de diversas cidades do interior do Piauí.
Se essa narrativa por si só já lhe parece contrastar com um lugar cotidianamente marcado por um silêncio solene, adicione o trecho cantado pela multidão, "Veja! Não diga que a canção está perdida. Tenha fé em Deus, tenha fé na vida. Tente outra vez!”, regida por Robert Seixas, conhecido por interpretar (cantar e vestir) um dos ícones do rock nacional, Raul Seixas. Isso sem falar nos bonecos de Olinda. De repente o Nordeste e sua diversidade parecia caber na catedral. Pouco tempo depois essa multidão haveria de tomar as ruas numa “balburdia” feita de muito baião.

“Se nós não acolhermos a cultura popular seremos um seita. O cristianismo se introduz dentro na vida das pessoas. Elas refletem sua fé e louvam a Deus. A cultura popular resgata os sonhos e com eles vencemos todas as dificuldades”, explica o pároco Antônio Cruz.
Entre as sanfoneiras e sanfoneiros me deparei com Maria Sebastiana Torres da Silva. O riso expressivo, que denota felicidade, parece saltar da face. Quem a via não poderia imaginar as dificuldades da viagem de São Raimundo Nonato à capital. Nada de novo para uma vida nordestina marcada, entre outras coisas, por transportes sucateados. A van quebrada na beira da estrada não lhe foi novidade, muito menos a impediu de chegar onde queria. O combustível que lhe trouxe, afirma: “é o amor pela sanfona e pelas amizades que conquistei no Piauí através dela”.
Em 2019, a Procissão das Sanfonas chega a sua 11ª edição contando com uma maior adesão do público teresinense, enaltecendo a musicalidade de Luiz Gonzaga, Raul Seixas e Jackson do Pandeiro. O evento, que a cada ano ganha visibilidade, contou com expressiva cobertura da imprensa, com direito a chamada ao vivo. Mas nem sempre foi assim.
Wilson Seraine, um dos organizadores, destaca que o evento surge em 2008, com a ideia de homenagear Luiz Gonzaga no dia de seu falecimento, ocorrido em 2 de agosto de 1989: a fim de lembrar a festa e a alegria que o Rei do Baião deixou. Indagado sobre a participação popular, demonstrou satisfação. “Era o que a gente esperava, que as pessoas viessem com a gente e vieram, mas estou impressionado. Tantos jovens, crianças, pessoas mais velhas. Estou realmente impressionado e feliz com o que acontece aqui”, pontua.
Para Lurdinha Nunes, 62 anos, forró não combina com solidão, por isso veio acompanhada de seu Benzinho, um boneco criado para a ocasião. Ela dança entre a aglomeração sem correr o risco de errar os passes. “Os nordestinos são homens e mulheres cheios de coragem e força. Sou piauiense e paraíba sim senhor. Essa festividade significa alegria em ser piauiense e nossa nordestinidade”, enfatiza Lurdinha Nunes.

A procissão acontece num momento em que a região Nordeste se vê atacada pela postura xenofóbica do presidente Jair Bolsonaro, chamada por ele de “Paraíba” durante diálogo com um dos seus ministros. Não é novidade que o termo esteja impregnado de preconceito. A julgar pelas falas de boa parte dos entrevistados, participar, cantar e dançar é ratificar o orgulho de ser nordestino, sentimento que se contrapõe à intolerância que marca, até aqui, a gestão federal.
Os grupos entoavam canções sob a cadência da zabumba, do triângulo e da sanfona. O comércio parou para ver o cortejo passar.
Foi expressiva a presença feminina, em especial das sanfoneiras, nada inferiores na lida com a arte em relação aos homens. Ocupam um lugar naturalmente delas. São protagonistas e não figurantes. “A cultura popular sempre foi feita também por mulheres. Estavam escondidas e hoje elas têm mais visibilidade. A gente sempre esteve aqui”, enfatiza Tauana Queiroz, 23 anos, que toca na “As Fulô Do Sertão” e “Caju Pinga Fogo”, ambas bandas teresinenses voltadas para a música nordestina.

Tocar sanfona é uma prática que se revitaliza. No que depender da nova geração, empolgada com as grandes referências do passado e do presente, vai permanecer. Sara Cavalcante Alves, 18 anos, faz parte da nova leva de sanfoneiros piauienses. A influência vem de casa, dos encontros da família regados à melodia do acordeom tocado pelo tio. “Vejo que hoje em dia muitas pessoas da minha idade dão mais valor ao que é de fora. Me sinto no dever de passar para outras pessoas essa cultura nordestina. Um povo sem cultura é um povo sem história”, argumenta Sara. O mesmo caminho é traçado por Arthur Bandeira, aos 4 anos de idade, sob o estímulo constante de sua mãe, Kátia Bandeira.

Havendo passado pelo calçadão da rua Simplício Mendes, a procissão conclui o trajeto até o Museu do Piauí. Lá a multidão se voltou para o palco repleto de artistas e suas sanfonas. O encerramento é marcado por apresentações e entrega de troféus. “Viva o sertão alternativo” canta Roger Seixas, referindo-se ao tema da procissão em 2019. “Aproxima o sertão, o nordestismo, a poesia nordestista. Aproxima os elfos do mandacaru”, reflete Robert acerca dos pontos de encontro entre as obras de Luís Gonzaga e Raul Seixas.
Definitivamente esta foi uma tarde de encontros que adentrou a noite. Encontros de referências importantes da música brasileira, de sanfoneiros e apreciadores da música nordestina, da fé com a cultura popular. Por Joaquim Cantanhêde
Galeria
Bình luận