Cem mil mulheres, cem mil histórias de vidas que percorrem um caminho comum. Avançam sob uma Brasília sombria, que a passos largos caminha para trás. Nada poderia melhor defini-las do que este trecho do hino que as rege.
“Somos de todos os novelos De todo tipo de cabelo Grandes, miúdas, bem erguidas Somos nós as Margaridas Nós que vem sempre suando Este país alimentando Temos aqui para relembrar Este país tem que mudar!”
A marcha que abraça tantos enredos de luta, destaque para as pautas campesinas, leva bem mais que um dos nomes de Margarida Maria Alves, primeira mulher à frente de um sindicato rural no Brasil, morta com um tiro de espingarda no dia 12 de agosto de 1983. Enaltece sua coragem e com ela memórias de seu protagonismo em defesa das mulheres e homens do campo. Trinta e seis anos após sua morte, o país mergulha em um profundo mar de retrocessos, retiradas de direitos que já afetam comunidades inteiras. Resistir é a sina dessas Margaridas e o governo Bolsonaro é a ameaça que consequentemente une mulheres do campo, da floresta, das águas e das cidades, de todas as regiões do país, marchando “por um Brasil com soberania popular, democracia, justiça e livre de violência”: proposta norteadora das atividades que integram a Marcha das Margaridas 2019, movimento iniciado em 2000 e que ocorre a cada 4 anos na capital federal, encabeçado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG).
O site Humanismo Caboclo acompanhou o deslocamento de parte da delegação maranhense até Brasília em uma viagem que durou cerca de dois dias e meio e sua participação na marcha. Um grupo majoritariamente composto por mulheres da região do Médio Mearim, Maranhão, estado com a maior delegação, coordenado pelo Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), atuante também no Pará, Piauí e Tocantins.
Não se pode resumir a Marcha das Margaridas ao simples deslocamento daqueles que a protagonizam até o Congresso Nacional, passando por pontos importantes de Brasília. Como bem pondera Francisca Maria Pereira, coordenadora regional do MIQCB, o evento demanda diálogo e articulação. “Quando terminar a marcha de 2019 se iniciará a preparação para 2022. Temos uma coordenadora que participa diretamente da organização, seja na discussão das temáticas bem como de todo o processo desenvolvido durante os quatro anos de preparo. Ela repassa para as 24 coordenadorias o que aconteceu nas reuniões. Nos atualizamos do processo e pontuamos outras demandas”. A importância da comunicação se verifica no engajamento das participantes e na extensão da marcha.
A ida e volta são feitas de espera, quilômetros, quentura e frieza. As caravanas maranhenses por vezes se encontram, lotam restaurantes e banheiros nas beiras das entradas. Um simples banho, o almoço, torna-se uma tarefa demorada. Nada que as desestimule. Cada cabeça tem para si um chapéu circundado por uma fita florida e uma margarida artesanal que o enfeita. Fazem questão de dizer quem são, de onde vêm e o que buscam. Semelhantes à Margarida Alves, “eu sou”, respondeu ao ser indagada por seu executor: “É dona Margarida? ”.
O deslocamento em si é um fenômeno interessante. Do lado de fora a paisagem se modifica. Os babaçuais dão lugar a campos de soja no sul do Maranhão evidenciando uma pressão do “Agro é pop” sobre o território. Dentro do vulgo “busão” mulheres (jovens e idosas) se debruçam em gargalhadas com piadas despidas de pudor. Censura não é um verbo que se faz presente. Uma das mais animadas é dona Maria José Ferreira Leite, irmã de Maria de Jesus Ferreira Bringelo, a Dona Dijé, importante líder quilombola falecida em 2018. Um momento de partilha das histórias de vida, já que nem todas pertencem a mesma comunidade. O fuzuê só para ante cansaço ou diante das instruções repassadas minutos antes da chegada, acompanhadas da entrega dos materiais informativos.
“Como mulher tenho todo o direito de reivindicar, não só por mim, mas por todas as mulheres. Sou uma guerreira, batalhadora e por isso estou aqui. Estamos vindo buscar nossos direitos. Muita coisa não está sendo correta e aí temos que reivindicar”, argumenta Antônia Genilda da Silva Lima, 37 anos, quebradeira de coco babaçu, pouco depois de chagar à Brasília para sua primeira Marcha das Margaridas. Divide espaço com as “veteranas”, termo usado por Maria de Jesus Ferreira Bringelo em referências às quebradeiras de mais idade.
O pavilhão Parque da Cidade nos dá uma ideia do quanto o espaço campesino é culturalmente diverso. Dentro de horas o local seria completamente ocupado por gente, barracas, malas e colchonetes. As inúmeras bandeiras de sindicatos e movimentos populares (Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Nordeste – MMTR-NE, Movimento de Mulheres Camponesas – MMC, Conselho Nacional das Populações Extrativistas – CNS, Central Única dos Trabalhadores – CUT e outros) jogam por terra o prognóstico dos que previam o fim dessas organizações populares, ainda que o atual governo se esforce para enfraquecê-las.
“Depois de todo processo de construção, de formação e mobilização nas bases, estamos aqui nesse grande dia corando nossa marcha, mostrando na capital federal a resistência das mulheres. Dizendo que não vamos nos calar diante de todos esses retrocessos, retirada de direitos da classe trabalhadora, sobretudo das mulheres. Tenho certeza de que elas voltarão para seus estados muito mais fortalecidas, para continuar na luta, na resistência, na defesa de nossos direitos”, destacada com firmeza Mazé Morais, secretária de Mulheres da CONTAG.
A marcha, como é de se esperar de um movimento desta natureza, teve caráter denunciativo, evidente nas falas e nos materiais repassados aos participantes. Questiona, entre alguns itens, a retirada de direitos conquistados e efetivados com a Constituição Federal de 1988; “a Reforma da Previdência em tramitação no Congresso Federal que transfere para os mais pobres e para os trabalhadores o ônus da crise econômica e questiona a pouca representatividade feminina nos espaços importantes de poder e decisão”.
O eixos e proposições defendidas foram:
· Por terra, água e agroecologia;
· Autodeterminação dos povos, com soberania alimentar e energética;
· Pela proteção e conservação da sociobiodiversidade e acesso aos bens de consumo;
· Por autonomia econômica, trabalho e renda;
· Por previdência e assistência social, pública, universal e solidária;
· Por saúde pública e em defesa do SUS;
· Por uma educação não-sexista e antirracista e pelo direito à educação do campo;
· Pela autonomia e liberdade das mulheres sobre seu corpo e sua sexualidade;
· Por democracia com igualdade e fortalecimento da participação política das mulheres.
A tarde do dia 13 de agosto foi composta por atividades simultâneas. Noss painéis temáticos as participantes dialogaram sobre os seguintes temas: “ Terra, territórios, maretórios e bens comuns”; “Enfretamento à violência contra as mulheres”; “Por previdência pública, universal e solidária”; “Soberania alimentar e agroecologia”; “Corpo e sexualidade”. Ao todo foram realizadas dez oficinas, três delas lúdicas: confecção de materiais para a marcha, teatro político e batucada. O evento contou também com o “Espaço educação popular em saúde” e o “Espaço mostra sabores e saberes das Margaridas”, construídos a partir de rodas de conversas.
“É a primeira vez que saio do Acre, do Norte e venho militar em prol de minha luta, que é a luta das mulheres indígenas, das margaridas, das extrativistas que representam o meu Acre. Esse ano, principalmente, a marcha é muito importante em virtude do cenário político em que estamos vivendo, com um presidente que não respeita a Previdência, nosso trabalho, nosso esforço. Estou feliz por estar aqui, embora meio triste ao lembrar do motivo principal: todas essas coisas ruins que estão acontecendo”, destaca Emilly Cabral, 17 anos, sem qualquer resquício de cansaço após três dias de viagem, de Rio Branco à Brasília.
No meio de toda aquele vai e vem achamos Liliane Levandoski, trabalhadora da Agricultura Familiar em Palmeira, Paraná, devidamente acampada. Sobre a marcha pondera: “Isso retrata toda a organização das mulheres, a luta delas pela nação. A junção de vários povos e culturas. Isso é importante pela união de todas as mulheres. Bom e bonito tudo isso”.
Perspectiva também compartilhada pela lavradora Maria do Socorro Costa Silva, 73 anos, de São João Batista, município localizado na baixada maranhense. “Terceira vez que acompanho. Me chama muito a atenção. Mulheres lutadoras, guerreiras, buscando melhorias, coisas que ainda não alcançamos”.
A 6ª Marcha das Margaridas teve início oficialmente na noite do dia 13, com a abertura política e cultural, momento cujas atenções foram direcionadas para o palco principal, marcado por forte expressão política e análise de conjuntura desenvolvidas por mulheres em representação a organizações diversas.
“Nós temos aqui esse compromisso, de lutar, ocupar essas ruas, marchar em Brasília para dizer que juntas não vamos aceitar nenhuma política ou lei injusta. Nós sabemos onde queremos chegar”, destaca Sonia Guajajara, coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).
A noite cultural contou com a performance musical da atriz Letícia Sabatella, que marcou sua participação com uma apresentação carregada de descontentamento político, indignação, poesia e esperança.
O sol ainda nem havia nascido e a calmaria de uma noite curta começava a se dissolver. Gente para lá e para cá. Cinco da madrugada, hora de fazer as malas, desarmar acampamento, tomar café, vestir a camisa e colocar o chapéu. Tempo de fazer da Marcha uma ação literal rumo ao centro do poder. De todas as distâncias enfrentadas, aquela que separava o Parque da Cidade do Congresso Nacional era a mais importante.
Dentre as muitas evidências a mais notável delas foi o protagonismo feminino. As mulheres não estavam ali como figurantes. Cada uma tinha o que dizer. Indígenas, negras, brancas, camponesas, ribeirinhas, urbanas. A Marcha das Margaridas 2019 seria uma história escrita por elas e para elas, sendo uma extensão do que já fazem em suas comunidades.
Parte da delegação maranhense trouxe menções que precisam ser destacadas. As quebradeiras de babaçu do Médio Mearim lembraram o legado de luta de dona Dijê e manifestaram indignação diante das notícias que chegavam sobre o despejo da comunidade rural Cajueiro, em São Luís.
“Esse é um momento para marchamos em prol dessa homenagem à Margarida Alves. Ele representa também nosso repúdio contra essa governabilidade, contra a Reforma da Previdência. Viemos também dizer que esse idiota (Jair Bolsonaro) não é a pessoa que trará o desenvolvimento rural/sustentável para todos os povos e comunidade tradicionais”, observa Maria Alaídes, coordenadora geral do MIQCB.
A multidão tomou conta das avenidas de Brasília. Cada delegação seguia trios elétricos, manifestando suas reivindicações através de gritos de ordem, cartazes ou em tecidos ilustrados, repletos de palavras que se traduzem as pautas das Margaridas.
“Estou muito emocionada por estar aqui. É um momento único. Estou muito feliz por tudo o que estou vivendo”, descreve Natália da Silva, de Natal, Rio Grande do Norte. Seu semblante refletia a alegria de fazer parte da história. Para ela a busca por igualdade de gênero é a pauta mais urgente.
Entre as idas e vindas da cobertura dividimos espaço com muitas comunicadoras. Afinal marcha é delas, para elas e será contada por elas, tarefa que inclui Ilma Queiroz, Eduarda Galvão e Lara Bione, que participam do movimento Mulheres no Audiovisual em Pernambuco (MAPE). “Estamos aqui em duas equipes para fazer não uma cobertura da marcha em si, mas para montar um documentário. Cada equipe está em um ônibus de Pernambuco, saídos de Caruaru e Recife. Estamos construindo um documentário coletivo. A gente fez uma articulação de movimento para montar a ideia deste documentário, para vir captar e também no processo de montagem que será coletivo”, explica Ilma Queiroz. “Entendendo a preparação, as trocas entre as mulheres nos ônibus, a chegada, a marcha em si e as percepções na volta para casa do que elas vivenciaram”, acrescenta Eduarda Galvão.
A marcha seguiu seu rumo sob os olhares atentos da Polícia Militar. O presidente Jair Bolsonaro, que não se cansa de arrotar sandices, nada disse até aqui sobre o movimento e suas pautas. O Estado se fez presente através das forças de repressão, em vão. Ao redor do Congresso foram colocadas grades. Os que desejavam levar uma foto de lembrança se sujeitavam à fila. Aquela parte intocável de Brasília, superprotegida, continua ignorando os gritos que ecoam do lado de fora.
Havendo as Margaridas cumprido o trajeto era hora de voltar para casa, para as marchas diárias, igualmente desafiadoras.
Mas afinal o que move essas mulheres? Compreender requer voltar no tempo, dias antes de Margarida Alves ser assassinada na Paraíba sob o testemunho do esposo e do filho pequeno. Diante das ameaças recebidas ela fez uma escolha: “Da luta não fujo. É melhor morrer na luta do que morrer de fome”. O que torna cem mil mulheres Margaridas? Continuar lutando.
Por Joaquim Cantanhêde
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