O amor tudo “suporta”, escreveu o apóstolo. Os moradores da comunidade Santo Antônio dos Sardinhas, município de Lima Campos, interior do Maranhão, entendem bem o sentido literal das palavras de São Paulo. Amor, fé e laços de sangue são os ingredientes que sedimentam a história de uma festividade tradicional que em 2019 completou 130 anos. Para além da conexão com religiões de matriz africana e com o catolicismo, lança luz sobre a resistência dos negros e suas culturas num país em que o racismo e a intolerância ganham novo fôlego e novas interfaces.
A pequena capela dedicada a Santo Antônio dos Sardinhas é muito mais que espaço para a prática da religião. É o centro da comunidade. Nele reside seu Anasete Rosa, de 81 anos. Mesmo em meio à pressa, afinal, tem suas ocupações, senta-se abaixo do alpendre de sua casa e fala sobre as origens do povoado: “Rapaz! Isso aqui nós compramos. O dono era outro. Umas das filhas do velho que era dono daqui mandou vender essa área de terra para meu pai, Irineu Rosa. O ajudei na compra. Os outros filhos tiveram que sair e eu fiquei com ele desde pequeno. Em 1980 ele faleceu... O irmão mais velho pegou o documento da terra e me entregou e estamos aqui, todo mundo sossegado, graças a Deus”.

A festividade tem como marco de início o levantamento do mastro. Compete aos homens da comunidade imergir nos babaçuais na busca pela palmeira ideal. O silêncio da mata é interrompido pela algazarra do séquito formado também por mulheres. Alguns rezam ou entoam ladainhas, outros optam pelo amargor do São João da Barra, bebida comum na região e costumeiramente presente nas práticas religiosas.
Para Raimundo Ferreira tanto faz a quentura. O suor passeia sobre sua face, desce pelo pescoço e só encontra limite no cordão que carrega no pescoço. Canta, reza, bebe, nada de ficar inerte. Só para quando precisa explicar ao repórter curioso o sentido da cerimônia.
“Antes de derrubar o pau a gente reza um pai nosso, banha a parte de baixo dele (mastro) com bebida, solta foguete e é essa alegria toda que você vê aí”, explica Raimundinho.
O caminho até o local da derrubada é distante, detalhe irrelevante para seu Anesete, um dos anciãos da comunidade e memória viva do festejo. Enquanto os mais novos se apressam, ele, que caminha com certa dificuldade, fica para trás. Com aquela tranquilidade típica de quem já viveu por muitas vezes esse rito, deixa latente que sua história de vida se confunde com a trajetória do lugar que o abriga. “O festejo é uma tradição que chegamos e achamos. Veneramos nosso padroeiro (Santo Antônio dos Sardinhas)”, explica, fazendo menção aos pais, de quem teria herdado a prática.

O mastro, já sobre os ombros dos fiéis, segue caminho até a igreja. Com sua chegada ao povoado uma multidão se aglomera, cada palmo é disputado. As pessoas se dividem fazendo do mastro algo que lembra um cabo de força. De um lado aqueles que o puxam afim de se aproximarem da igreja e os “antagonistas”que, por sua vez, tentam retardar sua entrada. A rivalidade não passa disso. Apesar dos esforços, mais cedo ou mais tarde o mastro adentra a capela e com ele dezenas de pessoas.

Em dias de festejo igreja divide notoriedade com um salão azulado cercado por tendas, localizado na praça, sendo espaço recreativo. Se na capela a memória dos ancestrais é lembrada nos cânticos, o salão se faz espaço para os hits do momento, bastante conhecidos, em especial pela juventude. Para o cantor Ronny Alberto, uma das atrações musicais de 2019, participar da festividades teve um sentido de retorno, já que é filho da comunidade. Fez questão de permanecer durante os três dias do evento em companhia da família.
“A gente vai crescendo, formando família, o trabalho vai nos consumindo e a gente acaba se afastando de determinados momentos com a família ou de alguma festa tradicional. Estou retornando às raízes. O mais importante é o fato de estar aqui, é estar fazendo parte deste evento, trabalhando junto com eles”, explica o cantor.
Ronny não é o único filho da terra que retorna. Vem gente de tudo quanto é lugar. Um momento originalmente constituído de devoção também se faz encontro entre aqueles que, em sua maioria, pertencem a mesma família. Por isso tantos abraços, risadas.
Em um espaço que se destaca de outras comunidades campesinas da região, dada a estrutura conseguida a partir da organização comunitária, os mais velhos e os mais novos dividem a mesma sina. Dar continuidade à festa requer zelo para que detalhes não se percam. Há uma imersão da nova geração na organização.

Um ano antes o jovem Helço Baima Ferreira fora escolhido para ser um dos administradores. Muita coisa aconteceu desde então. Apesar da correria típica de um momento ainda não acabado, refletiu sobre o desafio que foi torná-lo real, concreto. “A nossa grande preocupação era em fazer com que a tradição não ficasse de lado. As novenas continuam, os tambor continua e o mastro, que é uma das atrações da abertura. O povo fez a diferença. Desde junho que a gente pensa a programação, se articula, faz reunião”, pontua Helço Ferreira com a alegria de quem conseguiu dar à tradição continuidade, vendo-a repercutir, inclusive nas redes sociais.
Na segunda, pela manhã (18 de novembro), a comunidade ocupou a capela para dialogar sobre o festejo, o momento faz parte do mesmo. Hora de pensar sobre o que deu e o que não deu certo. Daquele instante sairia o próximo administrador. Entre os que usaram o espaço de fala esteve Domingos Rosa, 73 anos, lavrador e uma das figuras que nutre apego pela história dos seus antepassados e reconhece a importância da cultura local. Dias antes, sob a sombra de um alpendre, falou de memórias. “É uma sensação, uma alegria tão grande que a gente tem com esse festejo”.
Domingos Rosa não esconde a alegria pela casa cheia, o retorno de um dos filhos após três anos. É hora de abater o porco separado para esse instante. Nem o repórter escapa de experimentar tamanha fartura. Indiscutivelmente felicidade é a mais expressiva delas.
É exatamente o que se vê no semblante de Maria Eunice, 58 anos. “Antigamente o festejo era no mês de junho. Como não havia estrada (o período chuvoso dificultava o tráfego de veículos pelos caminhos de terra), mudaram a data para novembro, pois os carros conseguem entrar. A igreja e o salão eram de taipa”.

Tambores esquentados, mulheres e homens de todas as idade fazem um círculo ante o altar. Ali, testemunhados pelas imagens dos santos católicos, entoam o tradicional Tambor de Crioula. Adornada de uma saia florida, Sonia Ferreira Baima se anima, vai para o centro sob a cadência das batidas. José Raimundo parece em transe.
Comunidade em movimento, eis a imagem que fica de Santo Antônio dos Sardinhas. “Aqui é minha vida”, define a trabalhadora doméstica Samia Ferreira Baima. Em tempos onde a sociedade cultua as novas formas de conexão, seus moradores apostam na tradição, nos laços parentais, em um retorno ao que é ancestral. Para eles comunidade é raiz, é território. Por Joaquim Cantanhêde
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